25 de agosto de 2011

das coisas
que eu fiz a metro
todos saberão
quantos quilômetros
são

aquelas
em centímetros
sentimentos mínimos
ímpetos infinitos
não?
 Leminski

Contranarciso - Paulo Leminski

em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas


Ontem, dia 24-08, Leminski completaria 67 anos de vida. Não chegou a isso.
Sua poesia, por outro lado, completa hoje, 67 anos e um dia... e assim será para sempre. Porque, morrendo o gênio, nos restou suas palavras, sua matéria prima.

Obrigada Leminski. Feliz Aniversário.

24 de agosto de 2011

Prioridade Nacional - João Ubaldo Ribeiro

Paranóico sendo, suponho que de nascença (recusava-me a nascer e só fui aparecer — a fórceps — depois de dez meses de gestação), de vez em quando me vêm pesadelos, quase certezas, sobre como seremos legislados para a prática de todos os atos de nossa vida, privada ou não. E, o que é pior, submetidos a sistemas de controle aterradores, tais como chips eletrônicos no cérebro, com cuja idéia vocês acham que fiz chiste ainda outro dia, mas não era chiste. Já tem gente pelo menos pensando em desenvolver chips para criminosos condenados, que assim teriam suas ações monitoradas, ou mesmo orientadas. De criminosos para nós, outros, o passo ia ser curto. Posso imaginar até mesmo os futuros (e geneticamente manipulados) bebês, como quem toma uma vacina rotineira, recebendo seus chips de sociabilidade, responsabilidade, bom comportamento, compulsão para pagar impostos, docilidade e o que mais dispuser a lei. Que, aliás, encontraria terreno feraz, em meio à carneirada que já somos.

No Brasil, podemos não estar na vanguarda tecnológica. Mas, na legislativa, acho que de vez em quando damos mostras de que temos condição, havendo vontade política, de aspirar a uma posição de destaque. Agora mesmo, leio aqui que se encontra em curso, na Câmara de Deputados, um projeto para a regulamentação da profissão de escritor. Já houve uma tentativa anterior,aliás estranhamente apoiada por alguns escritores profissionais, que não vingou. Mas deve ser uma área atraente demais para ainda não estar regulamentada. Claro, nem todas as atividades, ofícios e profissões estão ainda regulamentadas, mas a dos escritores parece ser importante em excesso, para tão prolongado esquecimento governamental.

Não li o projeto, mas é claro que ele não pode ser discriminatório. Para definir o escritor, tem-se que ser o mais abrangente possível. Escreveu, valeu. Valerão, portanto, não só livros como panfletos, discursos, sermões, cartas, bilhetes, diários, memorandos, relatórios, bulas de remédio e — por que não? — um caprichado cardápio de restaurante. Como dizer a um sujeito que escreveu que ele não é escritor? Acusações de preconceito, incorreção política e discriminação se tornarão inevitáveis, se todo aquele que escrever não for classificável como escritor. Bem verdade que, de acordo também com o que li, caberá aos sindicatos de escritores essa árdua tarefa — e também eles terão o mesmo problema para rejeitar pretendentes.

Conhecemos o Brasil, não conhecemos? Finjamos que conhecemos, pelo menos. Que tramas logo entrevemos no futuro, se o projeto for transformado em lei? Posso logo conceber os casos tristes dos aposentados que escrevem regularmente para os jornais (mais um golpe nessa velharia desagradável que não serve para nada, pau neles) e serão, cedo ou tarde, flagrados no exercício ilegal da profissão. Claro, o projeto atual não deve prever isto, mas outros para complementá-lo advirão, principalmente porque assim se gerarão mais burocracia e mais empregos de favor, e os escrevedores de cartas aos jornais ou se filiam ao sindicato ou arrumam um amigo filiado, para co-assinar as cartas, na condição de "escritor responsável". Infortúnio que, aliás, deverá abater-se sobre diversos outros, como síndicos de prédios ou inspetores de obras, ou quem quer que seja obrigado a escrever relatórios. Talvez até placas, quem sabe? Será indispensável a chancela de um escritor responsável; do contrário, multa e cana inafiançável.

Os sindicatos da categoria, naturalmente, assumirão atribuições formidáveis, com o decorrer do tempo. Ficar contra a maioria, por exemplo, poderá render expulsão e a conseqüente impossibilidade de exercer a profissão. Não está tampouco fora de cogitação que um sindicato muito atuante emita, depois das tradicionais assembléias tumultuadas, palavras de ordem a seus filiados. A política do sindicato, por exemplo, poderia ser não aceitar, sob penas variadas, que se escrevessem romances de amor ou literatura igualmente alienante. Quem escrevesse, além de punido, seria traidor da categoria. Para não falar em greves, obrigando os laboratórios farmacêuticos (pensando bem, talvez eles mereçam) a mandar um representante à casa de cada consumidor, para expor-lhe oralmente o conteúdo da bula e matando de fome heróica os que, como eu, vivem da ingrata pena.

E, ça va sans dire, chegará o dia dos cursos. A coisa ficará um pouco fora de controle, haverá escritores de carteirinha em demasia, muitos despreparados para o exercício do mister, o descalabro terá que acabar. Para resolver isso, será criada uma comissão de notáveis (falar nisso, onde andam as comissões de notáveis, outrora tão abundantes e comentadas?), que, após dois anos de jetons e denúncias de interesses escusos, recomendará a criação de cursos superiores para escritores. Talvez como especialização, ou pós-graduação, dos atuais cursos de letras. O que vai interessar é o diploma para tirar a carteirinha. Para os veteranos, como novamente eu, talvez se consiga um provisionamento ou se exija um examezinho de habilitação, mas ainda assim a velha guarda será encarada com desprezo pelos novos, por faltar a ela a verdadeira formação profissional.

Sei que outra vez vocês pensam que eu brinco, mas não brinco. O Brasil tem leis interessantíssimas, que vieram com as melhores intenções e rendem situações intrigantes. Por exemplo, como se sabe, se o sujeito for pego matando uma tartaruga protegida, vai preso sem fiança. Em contrapartida, se encher a cara, sair de carro e matar umas quatro pessoas, paga fiança e vai para casa. No caso da tartaruga, alguém raciocinará que é mais negócio matar o fiscal do Ibama, mesmo com testemunhas. Principalmente se estiver um pouco bêbedo, porque aqui é atenuante. É só escapar do flagrante, mostrar ser réu primário, conseguir responder ao processo em liberdade e, com azar, pegar aí seus dois aninhos de cana efetiva (em regime semi-aberto). Portanto, se aqui é mais negócio matar um homem do que uma tartaruga, não brinco. Acredito que nos possam perpetrar qualquer absurdo, inclusive esses de que acabo de falar e outros, que não chegaram a me ocorrer, mas são possíveis. Entretanto, há sempre um lado bom. Por exemplo, se algum dia exigirem carteirinha de escritor para eu escrever, não escrevo mais. Será, quiçá, uma boa notícia para alguns. Ou muitos, talvez, ainda não promulgaram uma Lei de Proteção da Literatura Nacional, obrigando todo mundo a gostar de tudo o que escritor brasileiro escreve. Embora, é claro, eu alimente fundadas esperanças, pois uma boa lei resolve qualquer coisa.

18 de agosto de 2011

Midsummer's Night's Dream - Olavo Bilac

Quem o encanto dirá destas noites de estio?
Corre de estrela a estrela um leve calefrio,
Há queixas doces no ar... Eu, recolhido e só,
Ergo o sonho da terra, ergo a fronte do pó,
Para purificar o coração manchado,
Cheio de ódio, de fel, de angústia e de pecado...

Que esquisita saudade! - Uma lembrança estranha
De ter vivido já no alto de uma montanha,
Tão alta, que tocava o céu... Belo país,
Onde, em pérpetuo sonho, eu vivia feliz,
Livre da ingratidão, livre da indiferença,
No seio maternal da Ilusão da Crença!

Que inexorável mão, sem piedade, cativo,
Estrelas, me encerrou no cárcere em que vivo?
Louco, em vão, do profundo horror deste atascal,
Bracejo, e peno em vão, para fugir do mal!
Por que, para um ignota e longínqua paragem,
Astros, não me levais nessa eterna viagem?

Ah! Quem pode saber de que outras vidas veio?...
Quantas vezes, fitando a Via Láctea, creio
Todo mistério ver aberto ao meu olhar!
Tremo... e cuido sentir dentro de mim pesar
Uma alma alheia, uma alma em minha alma
                                                          [escondida,
- O Cadáver de alguém de quem carrego a vida...

9 de agosto de 2011

Para uma menina com uma flor - Vinícius de Moraes



Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, o que, aliás, você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado.
E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras.
E porque você sonha que eu estou passando você para trás, transfere sua d.d.c. para o meu cotidiano, e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre um nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, parecendo uma santa moderna, e anda lento, e fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der uma paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo.
E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pajem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim para ele, e ele escuta e não concorda porque ele é muito meu chapa, e quando você se sente perdida e sozinha no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E porque você é uma menina que tem medo de ver a Cara-na-Vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e cativou meu coração e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro.
E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim por elas, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vê. E porque você é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita para você, "Minha namorada", a fim de que, quando eu morrer, você, se por acaso não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse cantando sem voz aquele pedaço que eu digo que você tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois.
E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora - tão purinha entre as marias-sem-vergonha - a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nessas montanhas recortadas pela mão de Guignard; e o meu coração, como quando você me disse que me amava, põe-se a bater cada vez mais depressa.
E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfrentando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações - porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor.

3 de agosto de 2011

LEITE, LEITURA
LETRAS, LITERATURA,
TUDO O QUE PASSA,
TUDO O QUE DURA
TUDO O QUE DURAMENTE PASSA
TUDO O QUE PASSAGEIRAMENTE DURA
TUDO, TUDO, TUDO
NÃO PASSA DE CARICATURA
DE VOCÊ, MINHA AMARGURA
DE VER QUE VIVER NÃO TEM CURA.

LEMINSKI