22 de dezembro de 2010

Meus olhos - Pablo Neruda

Quisera que meus olhos fossem duros e frios
e que ferissem fundo dentro do coração
e que nada expressassem dos meus sonhos vazios,
fosse esperança ou ilusão.
Indecifráveis sempre a todos os profanos
do fundo e suave azul da tranquila safira,
incapazes de ver os pesares humanos
ou a alegria do viver.
No entanto estes meus olhos são cândidos e tristes,
não como eu os desejo nem como devem ser.
É que estes olhos meus é o coração que os veste
e seu desgosto fá-los ver.

19 de dezembro de 2010

O Natal, nas palavras de...


Caio Fernando Abreu

Torturas de Natal

Cada vez que olho esta fotografia tenho uma espécie de susto, e penso obviedades do tipo: "Meu Deus, o tempo existe!". Tirada no Natal de 1956, ela tem - cruzes! - 34 anos. Todo Natal, era sagrado, minha mãe emperiquitava a mim e a meu irmão Cláudio com modelinhos de linho branco e odiosas meias soquete, com elásticos eternamente frouxos, que acabavam escorregando patéticos pelas canelas finas - e chamava o fotógrafo. Não era nada simples chamar um fotógrafo naquele tempo, ainda mais o "Seo Fininho". "Seo Fininho" era magro como um aspargo, branco como a polpa das peras que começavam a amadurecer no quintal. Além disso, tinha a alma delicada e era o único fotógrafo de Santiago do Boqueirão. Tão requisitado que, dizem, às vezes era chamado até para fazer fotos na Argentina, do outro lado do rio Uruguai. Por isso mesmo, era preciso chamá-lo às três da tarde para que aparecesse lá pelas cinco ou seis. Durante todo esse tempo, interminável para Gremlins de sete, oito anos de idade como nós - eu e Cláudio ficávamos enfatiotados e absolutamente proibidos de tocar nos brinquedos colocados ao pé da árvore. Era horrível. Sim, porque no 25 de dezembro à tarde simplesmente toda a molecada estava deitando e rolando pelas ruas da cidade com os brinquedos ganhos na véspera. E nós ali, presos naquelas armaduras de linho branco, com golas abotoadas até o pescoço.



Embora - ou por isso mesmo - tivesse apenas sete ou oito anos de idade, eu já era capaz de ódios profundos. O suor escorria por baixo do paletó (a gente dizia trajo), as meias escorregavam canelas abaixo e o ódio pelo pobre "Seo Fininho" fervia n'alma, assim mesmo com apóstrofe. Só que, fazer malcriação, nem pensar: éramos filhos de Dona Nair, a primeira das dez mais elegantes da cidade, do seu Zaél, orador oficial do Clube União Santiaguense e, como se não bastasse, netos do ex-prefeito Manuel Abreu e de Dona Zaira, diretora do Grupo Escolar Apolinário Alegre, leitora voraz de Machado de Assis. Ou seja, para nossa desgraça, tínhamos que ser finíssimos, exemplo de educação, elegância e bom-comportamento para toda a cidade. Não entendo como, mas ninguém suspeitava de nossa bandidagem, capaz de loucuras como soltar uma galinha do mezanino no Cine Imperial, em pleno suspense do seriado na matinê de domingo. O mocinho amarrado nos trilhos do trem e aquele cá-cá-cá de penas voando em todas as direções, enquanto nosso primo Beto gritava "Fogo! Fogo!'.



Nesse Natal - e olhando a foto, percebo que a árvore não era dessas de plástico de hoje, mas de pinheiro autêntico -, quando "Seo Fininho" chegou, nem eu nem Cláudio agüentávamos mais esperar. Hirtos, obedecendo às ordens de "olha o passarinho! agora, sem se mexer! não pisca, guri!” o jeito que encontrei de expressar o mau-humor foi arregalar os olhos. Meu irmão deixou cair os ombros de tanto rir. Tarde demais: "Seo Fininho" já tinha nos gravado para a posteridade.



Fico olhando os brinquedos a nossos pés. Engraçado, não lembro de quase nada, à exceção do carrinho de madeira com que transportei muita terra, fazendo cidades de areia no fundo do quintal e bonecos de barro que rachavam irremediavelmente quando colocados ao sol para secar. Na verdade, eu nem ligava muito para brinquedos. Já andava escrevendo algumas histórias, lendo Érico Veríssimo escondido, e tenho certeza que lembrava ainda do acontecido impressionante de dois anos antes. Foi no dia em que Getúlio Vargas suicidou-se, e eu perguntei a vovó, que chorava sem parar: "Vovó, o que é mesmo um presidente?" Ela respondeu: "E assim como uma espécie de pai de todo mundo". Até hoje, fiquei com isso na cabeça. A sensação de traição, naturalmente, tem sido medonha nos últimos 36 anos...



Mas, por trás das desilusões políticas, ficaram as fotos dos Natais, o presépio com casinha de papel, os galhos verdadeiros dos pinheiros, a certeza de que, naquela tarde, havia sol lá fora, e uma pergunta inquietante: o que será que a vida fez com o pobre do "Seo Fininho"?

17 de dezembro de 2010

O Natal, nas palavras de...

Dalton Trevisan

Onde estão os Natais de antanho?

Insinua-se pela cortina de veludo vermelho — úmida e pegajosa —, afasta a mão com nojo: filho bastardo do rei Midas, tudo o que toca se desfaz em podridão. No rosto o bafo quente da sala; entre casal suspeito e velho pervertido e o seu abrigo.

Senta-se na última fila, os pés sobre cascas de amendoim, pipoca, papel de bala. Alheio às sombras na tela, enfrentará a passagem do Natal.

Escorraçou-o do bar a celebração ruidosa dos bêbados. Mais que ela, dois olhos aflitos no espelho da parede... Exílio de negridão viciosa, no cinema está defendido. Distingue a tosse do guarda que, vez por outra, circulando no corredor, assusta os casais de tarados. No canto, a lâmpada amarela sobre a cortina que, ao ser erguida, espalha nuvem fétida; pela sua agitação incessante, o interesse do público é mais lavar a mão do que assistir ao filme.

Entorpecido de álcool e do ar corrupto, cabeceia na cadeira dura. Uma voz melíflua pede-lhe docemente licença, enrosca-se no seu joelho — de todas as cadeiras vazias escolhe a do lado.

Sonolento, mal sustém a pálpebra aberta. Mascando e soprando a goma de bola, o mocinho a explode com beijo obsceno.

Patinhas de mosca na face, João espanta-a com a mão. Mosca não, o óculo brilhoso da criatura grudado no seu rosto: uma loira de voz rouca senta-se na cama. Estende a perna roliça, que o tipo lhe descalce o sapato. Ele arranca brutalmente o sapatinho dourado. Não é assim, meu amor, assim não. Repete o mocinho no sopro da bola:

— Não gosto de bruto.

O herói resmunga, a camisa estraçalhada de mil tiros — por amor dela bateu-se com o vilão? A loira estira a outra perna: Não sou a sua gatinha?
— Gatinha não sou? — a queixa lamuriosa ao lado.

Com as duas mãos, o tipo a descalça e beija a ponta do pé. Bem assim, meu amor. Sabe ser gentil.

O olho do mocinho escorre-lhe no rosto — baba fosfórea de lesma —, sem perder a legenda:

— Vai ser gentil, amor?

O durão de pé, a heroína à beira da cama; ergue o vestido de cetim brilhante, desprende a meia da cinta, oferece a linda perna comprida — mão tremente, ele enrola a meia desde a coxa. Raivoso, atira-a no tapete.

— Quieto, benzinho.

— Quietinho, meu bem — a voz aliciadora é sufocada pela tosse do guarda. Pisoteando cascas, novo espectador instala-se duas cadeiras na frente, revolve o pacote de amendoim, chupa frenético o dente.

Estou doente, vou morrer — lamenta-se o machão, atingido pela bomba de cobalto, no deserto de provas ocultou-se da policia. Minha carne é gélida. Bala de revólver não a atravessa metade homem, metade monstro de ferro.

O maníaco do amendoim assobia, o mocinho rumina a bola, João sofre as penas do herói.

Agora a loira corre o fecho do vestido, a nudez entrevista: Eu sou Rosinha. Posso derreter o aço. Sei abrasar o corpo gélido.

— Rosinha... sei abrasar... — insiste o eco suspiroso do mocinho.

Rebenta a bola de goma, esbarra-lhe no joelho e, entre as cadeiras vazias, senta-se ao lado do chupador de dente. Na tela a heroína furiosa rasga a camisa do tipo, descobre o ombro sardento. Unhas rapaces enterram-se — apesar do metal — na carne fofa.

João estremece: uma ratazana ali no corredor? Prestes a levantar-se, enxuga a mão no joelho.

À sua frente cochicha o moço com o vizinho, que deixa de assobiar. João não ergue o pé, e mordendo o uivo, segue a corridinha da ratazana. Virá, em seu passeio tonto, enroscar-se no sapato e atarantada subir na perna?

No silêncio da sala escuta o alarido do peito. O guarda não tosse, o maníaco não assobia, apenas o crepitar das cascas, agora mais perto.

Violado o santuário, outra vez em pânico: uma gota de suor brinca-lhe na pálpebra. Perdido com as vozes sem respostas: Onde está minha casa, minha mulher onde está? E onde estão afinal os Natais de antanho?

Luta com a imagem na tela, repete em voz baixa a legenda. Surgem das cadeiras vazias as filhas, tão pálidas, meu Deus, camisolinha em farrapos, descalças, a vagar gementes no deserto. Chorosa, indaga a menor, sem vê-lo na penumbra: Onde foi papai? Que fim o levou?

Por mais aflito, não pode sair — ainda não, há que esperar a passagem do Natal. Ficará até a explosão da última bomba. Tudo menos o quarto do hotel, medroso de certa gaveta, entre as meias sem pares o brilho da navalha...

Ali no cineminha pode esconder-se de si mesmo. Rei da terra, que foi feito de quem ele era? Sem mover a cabeça, relanceia o olho no corredor: as dores do mundo trazidas no focinho úmido da rata piolhenta.

Espavorido, o pé plantado nas cascas de amendoim — a ratazana que belisca a barra da calça?

Lá fora os sinos, buzinas, gritos de bêbados.

— Outro de menos — resmunga João. — Deste eu estou livre.

Passada a hora pior, eis que é um homem. Está salvo daquele Natal. Outro não haverá antes de um ano inteiro.

 
Texto publicado no livro "Desastres do Amor", Editora Record - Rio de Janeiro, 1993, foi extraído de "Contos para um Natal brasileiro", Relume Dumará/IBASE - Rio de Janeiro, 1996, pág. 121.

9 de dezembro de 2010

O Natal, nas palavras de...

Rubem Braga

Conto de Natal

Sem dizer uma palavra, o homem deixou a estrada andou alguns metros no pasto e se deteve um instante diante da cerca de arame farpado. A mulher seguiu-o sem compreender, puxando pela mão o menino de seis anos.

— Que é?

O homem apontou uma árvore do outro lado da cerca. Curvou-se, afastou dois fios de arame e passou. O menino preferiu passar deitado, mas uma ponta de arame o segurou pela camisa. O pai agachou-se zangado:

— Porcaria...

Tirou o espinho de arame da camisinha de algodão e o moleque escorregou para o outro lado. Agora era preciso passar a mulher. O homem olhou-a um momento do outro lado da cerca e procurou depois com os olhos um lugar em que houvesse um arame arrebentado ou dois fios mais afastados.

— Péra aí...

Andou para um lado e outro e afinal chamou a mulher. Ela foi devagar, o suor correndo pela cara mulata, os passos lerdos sob a enorme barriga de 8 ou 9 meses.

— Vamos ver aqui...

Com esforço ele afrouxou o arame do meio e puxou-o para cima.

Com o dedo grande do pé fez descer bastante o de baixo.

Ela curvou-se e fez um esforço para erguer a perna direita e passá-la para o outro lado da cerca. Mas caiu sentada num torrão de cupim!

— Mulher!

Passando os braços para o outro lado da cerca o homem ajudou-a a levantar-se. Depois passou a mão pela testa e pelo cabelo empapado de suor.

— Péra aí...

Arranjou afinal um lugar melhor, e a mulher passou de quatro, com dificuldade. Caminharam até a árvore, a única que havia no pasto, e sentaram-se no chão, à sombra, calados.

O sol ardia sobre o pasto maltratado e secava os lameirões da estrada torta. O calor abafava, e não havia nem um sopro de brisa para mexer uma folha.

De tardinha seguiram caminho, e ele calculou que deviam faltar umas duas léguas e meia para a fazenda da Boa Vista quando ela disse que não agüentava mais andar. E pensou em voltar até o sítio de seu Anacleto.

— Não...

Ficaram parados os três, sem saber o que fazer, quando começaram a cair uns pingos grossos de chuva. O menino choramingava.

— Eh, mulher...

Ela não podia andar e passava a mão pela barriga enorme. Ouviram então o guincho de um carro de bois.

— Oh, graças a Deus...

Às 7 horas da noite, chegaram com os trapos encharcados de chuva a uma fazendinha. O temporal pegou-os na estrada e entre os trovões e relâmpagos a mulher dava gritos de dor.

— Vai ser hoje, Faustino, Deus me acuda, vai ser hoje.

O carreiro morava numa casinha de sapé, do outro lado da várzea. A casa do fazendeiro estava fechada, pois o capitão tinha ido para a cidade há dois dias.

— Eu acho que o jeito...

O carreiro apontou a estrebaria. A pequena família se arranjou lá de qualquer jeito junto de uma vaca e um burro.

No dia seguinte de manhã o carreiro voltou. Disse que tinha ido pedir uma ajuda de noite na casa de “siá” Tomásia, mas “siá” Tomásia tinha ido à festa na Fazenda de Santo Antônio. E ele não tinha nem querosene para uma lamparina, mesmo se tivesse não sabia ajudar nada. Trazia quatro broas velhas e uma lata com café.

Faustino agradeceu a boa-vontade. O menino tinha nascido. O carreiro deu uma espiada, mas não se via nem a cara do bichinho que estava embrulhado nuns trapos sobre um monte de capim cortado, ao lado da mãe adormecida.

— Eu de lá ouvi os gritos. Ô Natal desgraçado!

— Natal?

Com a pergunta de Faustino a mulher acordou.

— Olhe, mulher, hoje é dia de Natal. Eu nem me lembrava...

Ela fez um sinal com a cabeça: sabia. Faustino de repente riu. Há muitos dias não ria, desde que tivera a questão com o Coronel Desidério que acabara mandando embora ele e mais dois colonos. Riu muito, mostrando os dentes pretos de fumo:

— Eh, mulher, então “vâmo” botar o nome de Jesus Cristo!

A mulher não achou graça. Fez uma careta e penosamente voltou a cabeça para um lado, cerrando os olhos. O menino de seis anos tentava comer a broa dura e estava mexendo no embrulho de trapos:

— Eh, pai, vem vê...

— Uai! Péra aí...

O menino Jesus Cristo estava morto.
Texto extraído do livro "Nós e o Natal", Artes Gráficas Gomes de Souza - Rio de Janeiro, 1964, pág. 39.

8 de dezembro de 2010

O Natal, nas palavras de...

Mário Prata


Jingle Bell prá vocês

Não gosto do Natal. Não chego a odiar mas não gosto. Nunca gostei. Desde pequeno, no interior. Papai Noel sempre me assustou. Gostava de preparar a árvore com dias de antecedência, apesar de não concordar em colocar algodão para "simbolizar" a neve. Gostava de imaginar os presentes. Aliás, não gosto nem de dar e nem de receber presentes em datas certas. O presente é bom quando você não espera. No aniversário, Natal, Dia da Criança, depois Dia dos Pais, acho um saco de Papai Noel. O presente, conforme a palavra em si se explica, é uma presença. Portanto, não pode ser datada. Não deve ser uma obrigatoriedade.

Além de não gostar do Natal, em alguns aspectos, ele chega a ser irritante: Em vários aspectos. Senão, vejamos:

— Quer coisa mais irritante durante o mês de dezembro do que ir a um barzinho ou restaurante, de noite, para tomar um chopinho e ter, ao seu lado, aos gritos, berros e urros, uma "festinha da firma", com risos histéricos, discursos profundos e etílicos do "chefe", gozações com a "gostosa" da firma e a indefectível troca de "amigos secretos?" Por que gritam tanto nas "festinhas da firma?" E quando você vai ao banheiro sempre tem um ou dois funcionários burocraticamente vomitando. Como se vomita no Natal! Principalmente os bancários.

— E o "amigo secreto" então? Já notaram que sempre sai para quem não é nem muito amigo e muito menos muito secreto? E você passa o mês inteiro tendo que imaginar o que vai dar praquele chato. Se o "amigo secreto" já é uma relação constrangedora na firma, em família então, nem se fala. Em primeiro lugar, porque dois ou três dias depois do "sorteio", todo mundo já sabe quem é o amigo de quem. Você já sabe pra quem vai dar e de quem vai receber. Essas informações sempre vazam no seio familiar. Sempre tem uma irmã que sabe de todos, ninguém sabe como. E você que torceu para não sair aquela prima fofoqueira, pois é justamente com ela que você vai se abraçar logo mais. E dizer todas aquelas frases. Todas, são insubstituíveis.

— E as propagandas de Natal? Existe coisa mais horrível que este bando de gordos com brancas barbas, puxados por veadinhos? A publicidade brasileira é uma das melhores do mundo, perdendo talvez apenas para a inglesa. Mas, chega o Natal, baixa o "espírito natalino" nos criadores das agências e dá no que dá. Eles não conseguem (há 1.994 anos) fazer um único anúncio sequer decente nessa época. São constrangedores, amadores, dignos de um Papai Noel de mentirinha. Tem uns, mais "criativos", que até neve têm, debaixo dos 40 graus de dezembro.

— E aqueles Papais Noéis que vão de casa em casa e os pais obrigam as criancinhas a dar beijo naquele sujeito imenso, barba descolada, sapatão de militar, já meio bêbado depois de passar em várias casas de amigos e parentes? As criancinhas esperneiam, não dormem semanas seguidas, sonhando com aquele monstro que o pai fez beijar. Meu Deus, é um outro pai que eu tenho?, devem pensar os pequenininhos da família. E o monstro ainda diz "coisas" para os indefesos, presos nos braços do pai ou da mãe, quiçá da avó: este ano, não vai fazer malcriação, vai comer toda a papinha, não vai mentir e nem fazer xixi na cama, viu, Rony? Coitados.

— Mas o pior mesmo é a ceia, propriamente dita. Com o passar dos anos, a família vai crescendo e de repente já são quatro gerações que estão ali, de olho no peru. Umas 50 pessoas. E ali dá de tudo. Cunhados que não se falam, a velhinha que não escuta os planos do asilo, o fulano que está falido, coitado, a prima que está dando para um sobrinho, aquele casal que está separado mas que, no Natal, baixa o "espírito" e eles comparecem juntos. Todo mundo sabe que se odeiam. Mas é Natal. Aquele tio que deve tanto para o seu irmão também está lá. Mas é Natal. E a irmã que não pagou a trombada que ela deu com o carro do tio-avô? Tudo é permitido. Afinal, é Natal. Nasceu quem mesmo? Jesus, não foi? E, por isso, à meia-noite, todos dão as mãos e rezam (des)unidos.

— E, para terminar: existe música mais chata que Jingle Bell?

Já o Reveillon, é o maior barato. É quando tomamos o porre para tirar e esquecer a ressaca do Natal. Mas não adianta. No ano que vem, tem outro Natal.

 Texto extraído do livro "100 Crônicas", Cartaz Editorial - São Paulo, 1997. pág. 148.

4 de dezembro de 2010

Análise do conto "A última noite de Natal" de Graciliano Ramos


Os grandes olhos claros e aguados boiavam na sombra nevoenta, cheios de espanto. Esfregou-os, arrastou-se pesado e estanguido, mal seguro à bengala, sentou-se num banco do jardim, fatigado, suspirando, examinou a custo os arredores. Gastou uns minutos passeando as mãos desajeitadas na gola do casaco. O exercício penoso enfureceu-o. Resmungou palavras enérgicas e incompreensíveis, esforçou-se por dominar a tremura. Com certeza era por causa do frio que os dedos caprichosos divagavam no pano esgarçado e os queixos banguelos se moviam continuamente. Era por causa do frio, sem dúvida. Se conseguisse abotoar o casaco e levantar a gola, os movimentos incômodos cessariam.

Em que estava pensando ao chegar ali? Ia jurar que pensava em coisas agradáveis. Ou seriam desagradáveis? Pedaços de recordações incoerentes dançavam-lhe no espírito, acendiam-se, apagavam-se, como vaga-lumes, confundiam-se com os letreiros verdes, vermelhos, que se acendiam e apagavam também quase invisíveis na poeira nebulosa. Tentou reunir as letras, fixar a atenção nas mais próximas, brilhantes, enormes.

No primeiro parágrafo, já se pode perceber que se trata de um senhor de idade, um velhinho, com dificuldade de locomoção, pois "sentou-se num banco do jardim, fatigado, suspirando", e também pela tremura das mãos e a dificuldade de fechar o casaco. No segundo parágrafo, o problema de visão aparece, com a dificuldade de distinguir letras. Já nesses primeiros parágrafos, nota-se a presença de um narrador onisciente, que conhece os pensamentos do personagem, que sabe o que passa em sua mente, como se sente, como gostaria de se sentir, como vê as coisas. Por exemplo, na primeira frase, onde os olhos "claros e agudos boiavam na sombra nevoenta, cheios de espanto." Somente um narrador que sabe o que se passa na mente do personagem saberia que os olhos estavam cheios de espanto. Outro exemplo, é a ironia imposta quando se discute a razão da tremura das mãos, onde, na cabeça do velhinho "era por causa do frio, sem dúvida.", deixando a entender que sua idade não era a real causadora desse mal. No segundo parágrafo o narrador onisciente fica ainda mais visível, pois fala das recordações que lhe vieram à mente, e logo se apagaram. O nebuloso, a escuridão e a angústia se mostram desde o começo, e se estendem durante o conto todo.

A igreja toda aberta resplandecia. O incenso formava uma neblina perturbadora. E, através dela, os altares refugiam como sóis, a luz das velas numerosas chispava nas auréolas dos santos.

Que doidice ! Não é que estava imaginando ver ali, nas transitórias claridades, a igreja vista sessenta anos antes? Tresvariava. Sacudiu a cabeça, afastou a lembrança importuna. De que servia desenterrar casos antigos, alegrias e sofrimentos incompletos?

Aonde está esse personagem? Está sentado num banco, mas em que lugar? Essa questão aparece no terceiro parágrafo, onde as imagens se confundem tanto para ele quanto para o leitor, devido à neblina formada pelo incenso. A pergunta é respondida no quarto parágrafo, ele estava em frente a uma igreja. Uma igreja que lhe trouxe mais e mais lembranças, algumas importunas. Sua vida sempre fora fragmentada, pedaços, cortes, recortes, peças, "casos antigos", "alegrias", "sofrimentos incompletos". O que mais estaria incompleto?

O que devia fazer... Pôs-se a mexer os beiços, procurando nas trevas úmidas e leitosas que o envolviam o resto da frase. O que devia fazer... Repetiu isto muitas vezes, numa cantilena, distraiu-se olhando a chuva amarela, verde, vermelha, dos repuxos. Impossível distinguir as cores. Ultimamente a cidade ia escurecendo. As pessoas que transitavam junto aos canteiros sem flores eram vultos indecisos; os prédios se diluíam nas ramagens das árvores, manchas negras; os letreiros vacilantes não tinham sentido.

O que devia fazer... De repente a idéia rebelde surgiu. Bem. Devia meter os botões nas casas e agasalhar o pescoço. Depois cruzaria os braços, aqueceria as mãos debaixo dos sovacos, ficaria imóvel e tranqüilo. Mas os dedos finos e engelhados avançavam, recuavam, não havia meio de governá-los. Se pudesse riscar um fósforo, chegá-lo a um cigarro, esqueceria os inconvenientes que o aperreavam: o frio, a dureza das juntas, o tremor, a zoeira constante, sussurro de marimbondos assanhados. Dores errantes andavam-lhe no corpo, entravam nos ossos e vinham à pele, arrepiavam os cabelos, fixavam-se nas pernas, esmoreciam.
 
"Impossível distinguir as cores." "Ultimamente a cidade ia escurecendo." Aqui, novamente, temos o problema de visão, transformando as pessoas em vultos, diminuindo a claridade da cidade. Mas a cidade não escurecia apenas porque o personagem já não via bem, escurecia porque dentro dele algo estava morrendo, porque dentro dele algo estava se apagando. A cidade, as pessoas, a vida, estavam escurecendo, estavam perdendo o sentido e o significado para ele. As dores errantes das quais fala o narrador, não são apenas dores físicas, não invadiram apenas os ossos e pele, invadiram seu coração.
 
Agora não estava no banco do jardim, perto das estátuas, das árvores, do coreto, dos esguichos coloridos. Estava longe, a sessenta anos de distância, ajoelhado na grama, diante da igreja da vila. Os rostos embotados, que se dissociavam, juntaram-se no largo onde um padre velho dizia a missa da meia-noite. Fervilhavam matutos em redor das barracas, num barulho de feira, e uma sineta badalava impondo em vão respeito e silêncio. Os cavalinhos rodavam. Esgueiravam-se casais pelos cantos. O padre velho dirigia olhares fulminantes àquela cambada de hereges. Uma figura pequenina cantava os hinos ingênuos, de versos curtos, fáceis. Tudo parecera de chofre muito sério, eterno. Os hinos capengas elevavam-se, estiravam-se. A mulher tinha um rosto de santa e exigia adoração. Sessenta anos. As fachadas enfeitavam-se com lanternas de papel, janelas escancaradas exibiam presépios, listas de foguetes cortavam o céu negro. A sineta badalava, zangada. E o burburinho da multidão não diminuía.

Sessenta anos. Da cinza que ocultava os olhos frios saltou uma faísca; os alfinetes pregados na carne trêmula embotaram-se; o espinhaço curvo endireitou-se; um débil sorriso franziu os beiços murchos; os braços ergueram-se lentos, buscando a imagem de sonho.


Neste parágrafo, o personagem volta ao passado, há sessenta anos atrás. Volta à igreja, naquela missa da meia noite, onde conheceu alguém que "exigia adoração". Relembra os detalhes, os casais nos cantos, o sino, o padre. Lá, ajoelhado, naquela missa de Natal, vislumbrando e adorando aquela santa, algo mudou dentro dele. E, hoje, ao lembrar desse momento, seus olhos se iluminam, seu coração de enche de luz novamente, "o espinhaço curvo endireitou-se", ou seja, todo o peso da vida lhe saí de cima das costas, e até um sorriso é capaz de esboçar. Tudo por aquela imagem apenas de sonho.

Imagem de sonho, que doidice! Era apenas uma bonita criatura de bom coração. Ligara-se a ela. E dezenas de vezes tinham-se os dois ajoelhado ali na grama, olhando as lanternas, os presépios, os foguetes, o padre que dizia a missa da meia-noite. Algumas esperanças, muitos desgostos. Os meninos cresciam, engordavam. E no jardim da casa miúda um jasmineiro recendia.

E daquele primeiro encontro na missa de Natal, nasceu um amor. Um amor tão forte que o autor afirma "ligara-se a ela", como se um vínculo emocional e espiritual tivesse se formado entre os dois, como se essa ligação fosse indestrutível, muito mais do que somente casamento, algo atemporal. Casam-se. Unem-se. E a vida de casal é apresentada com quatro palavras: "algumas esperanças, muitos desgostos". Filhos, uma casa aconchegante, com um jardim, uma vida feliz.

Depois tudo fora decaindo, minguando, morrendo. Achara-se novamente só. Os filhos e os netos se haviam espalhado pelo mundo. Agora... que extensa caminhada, que enormes ladeiras, pai do céu! Já nem se lembrava dos lugares percorridos.

Conseguiu abotoar o casaco e levantar a gola.

Andar tanto e afinal chegar ali, arriar num banco, não perceber as letras que se acendiam  e apagavam.


E tudo fora morrendo, ficou só, sua companheira partira antes dele, a mulher com quem havia se ligado quebrara esse laço, e levara consigo sua alegria e vontade de viver. Essa vida que lhe restara, essa extensa caminhada, fora marcada por sofrimentos e dificuldades, "enormes ladeiras". E a última frase diz tudo, "andar tanto e afinal chegar ali...", chegar ali, naquele banco de praça, apenas com suas lembranças, suas doces lembranças, mais uma noite de Natal só, mais uma noite só. Doente, velho, cansado. Sozinho.

Certamente àquela hora, diante duma igreja aberta, outro homem novo admirava outra pessoinha ajoelhada, sentia desejos imensos, formava planos absurdos. Os desejos e os planos iam desfazer-se como a fumaça luminosa dos repuxos.

O ciclo da vida. O seu ciclo estava se fechando, e o de outra pessoa estava apenas começando. Alguém que viveria as mesmas coisas que ele viveu, que sofreria tanto quanto ele, que choraria lágrimas tão amargas quanto as suas, que sentiria uma saudade dolorida como aquela que sentira. Mas que amaria também como ele amou, se uniria à alguém como ele se uniu. Sua última noite de Natal finalmente chegara. Estaria novamente ao lado de sua amada, o peso da vida ficaria naquele banco, sua extensa caminhada terminava ali. E tudo que ele viveu, alguém estaria começando a viver naquela noite, mas o nebuloso e a escuridão finalizam o texto, como se fosse um aviso do velho para o próximo que vivesse sua história: a felicidade é tão efêmera e passageira, quanto "a fumaça luminosa dos repuxos".

3 de dezembro de 2010

Amor - Dalton Trevisan

O amor é a Mula-sem-Cabeça que ronda a tua porta e te chama pelo nome.
Bicho-Papão que devora, sem mastigar, o teu pequeno coração palpitante.
É o Vampiro que te planta os caninos na garganta num batismo de sangue e orgasmo múltiplo.
Frankenstein que te mutila e desventra, cada pedacinho uivando de dor, gemendo de gozo e pedindo mais.
Lua cheia, na garupa do Lobisomem, você galopa pelas encruzilhadas do ciúme, da traição, da loucura.
Sob a máscara o Fantasma da Ópera te oferece um dueto lírico e uma lição grátis de tortura sadomasoquista.
O amor faz de você a Maldição da Múmia, cada tira de gaze arranca do teu coração gritos de êxtase e volúpia.
O amor tem boquinha pintada cornos de fogo rabo torcido.
O amor é o Diabo.

Extraído do livro: "Duzentos ladrões".

1 de dezembro de 2010

A ponte - Dalton Trevisan


Há alguns dias atrás, adquiri o livro "Duzentos ladrões" do Dalton. Um pocket ilustrado, cheio de minicontos fantásticos, naquele estilo Dalton de escrever: na veia, sem rodeios, sem dó. Ao chegar na página 71, me deparo com o texto "A ponte", e qual não foi minha surpresa ao terminar de lê-lo na página 72, ao constatar que se tratava de um texto... mais suave, mais doce (?). Sinceramente, não encontrei palavras ainda para descrever como esse belo texto é, aonde ele melhor se encaixa. A única coisa que posso dizer, é que me tocou profundamente, como nenhum outro texto do Dalton tinha antes feito. Lendo-o, vi outra face do enigmático Vampiro de Curitiba... quem dera eu pudesse entender e conhecer todas elas... Mas entendê-lo, seria decifrá-lo, e isso não quero. Prefiro que ele continue sendo sempre esse mistério, que a cada linha, me surpreende e me leva ao próximo texto. Salve, Dalton Trevisan!



A ponte

Depois que a filha de dezoito anos morreu num acidente, a pobre senhora nunca mais foi a mesma. Se Deus, que era o seu Deus de fervorosas preces diárias, matava a filha no lugar e na vez da mãe, tudo carecia de sentido.
Deprimida, sem ânimo, ela não fazia nada. Não conversava, não cozinhava, não bordava, não lia. Não nada.
E nunca, nunca mais rezou.
Ali diante dos outros, porém ausente. Cabisbaixa, gesto manso, alheia ao mundo em redor. Se alguém lhe falava, única resposta era um olhar triste - mas tão triste que antes não olhasse.
Anos se passaram. Ela achou que era tempo de se reunir à filha perdida. Acabar com essa angústia sem fim. Sacudiu a apatia, invocou toda a coragem. E decidiu, sim, atirar-se da ponte da cidade.
Acorda bem cedo, veste o melhor vestido. E - faz frio - um casaco marrom de lã. Rabisca bilhete em despedida: não mais que sete linhas (com duas palavras riscadas, quais serão?). Uma vida inteira, já pensou, no simples adeus de sete linhas? Antes que a família se levante deixa na mesa da cozinha a folha de caderno, sem dobrar.
Vai até a porta, reluta um pouco e volta. Do dedo anular com esforço repuxa a aliança. Um e outro toque fácil, se livra da dentadura. E, sobre o bilhete, deposita as duas prendas.
Chegando ao meio da ponte demora-se algum tempo a olhar - choveu à noite - as águas revoltas do rio. Perdeu a coragem ou está em dúvida?
Seja porque é muito alta, cruza toda a ponte, começa a descer pela encosta. A grama úmida, daí escorrega. Desliza pela ribanceira, bate a cabeça numa pedra e tomba suavemente na água.
É domingo, Dia das Mães. A família acorda mais tarde. Assim que acham o bilhete, em desespero, correm de lá para cá. Alguém se lembra da ponte preferida pelos suicidas da cidade.
De longe vêem um bando de crianças que brincam à beira do rio. O corpo está preso numa forquilha, de borco, meio afundado na água escura.
E, como elas não sabem o que é, atiram pedras apostando quem acerta mais vezes.
No velório, apesar de ferida, a pobre mãe mostra o tempo todo a suave expressão de paz encontrada. E uma sombra de sorriso triste.
Mas tão triste que antes não sorrise.