17 de dezembro de 2010

O Natal, nas palavras de...

Dalton Trevisan

Onde estão os Natais de antanho?

Insinua-se pela cortina de veludo vermelho — úmida e pegajosa —, afasta a mão com nojo: filho bastardo do rei Midas, tudo o que toca se desfaz em podridão. No rosto o bafo quente da sala; entre casal suspeito e velho pervertido e o seu abrigo.

Senta-se na última fila, os pés sobre cascas de amendoim, pipoca, papel de bala. Alheio às sombras na tela, enfrentará a passagem do Natal.

Escorraçou-o do bar a celebração ruidosa dos bêbados. Mais que ela, dois olhos aflitos no espelho da parede... Exílio de negridão viciosa, no cinema está defendido. Distingue a tosse do guarda que, vez por outra, circulando no corredor, assusta os casais de tarados. No canto, a lâmpada amarela sobre a cortina que, ao ser erguida, espalha nuvem fétida; pela sua agitação incessante, o interesse do público é mais lavar a mão do que assistir ao filme.

Entorpecido de álcool e do ar corrupto, cabeceia na cadeira dura. Uma voz melíflua pede-lhe docemente licença, enrosca-se no seu joelho — de todas as cadeiras vazias escolhe a do lado.

Sonolento, mal sustém a pálpebra aberta. Mascando e soprando a goma de bola, o mocinho a explode com beijo obsceno.

Patinhas de mosca na face, João espanta-a com a mão. Mosca não, o óculo brilhoso da criatura grudado no seu rosto: uma loira de voz rouca senta-se na cama. Estende a perna roliça, que o tipo lhe descalce o sapato. Ele arranca brutalmente o sapatinho dourado. Não é assim, meu amor, assim não. Repete o mocinho no sopro da bola:

— Não gosto de bruto.

O herói resmunga, a camisa estraçalhada de mil tiros — por amor dela bateu-se com o vilão? A loira estira a outra perna: Não sou a sua gatinha?
— Gatinha não sou? — a queixa lamuriosa ao lado.

Com as duas mãos, o tipo a descalça e beija a ponta do pé. Bem assim, meu amor. Sabe ser gentil.

O olho do mocinho escorre-lhe no rosto — baba fosfórea de lesma —, sem perder a legenda:

— Vai ser gentil, amor?

O durão de pé, a heroína à beira da cama; ergue o vestido de cetim brilhante, desprende a meia da cinta, oferece a linda perna comprida — mão tremente, ele enrola a meia desde a coxa. Raivoso, atira-a no tapete.

— Quieto, benzinho.

— Quietinho, meu bem — a voz aliciadora é sufocada pela tosse do guarda. Pisoteando cascas, novo espectador instala-se duas cadeiras na frente, revolve o pacote de amendoim, chupa frenético o dente.

Estou doente, vou morrer — lamenta-se o machão, atingido pela bomba de cobalto, no deserto de provas ocultou-se da policia. Minha carne é gélida. Bala de revólver não a atravessa metade homem, metade monstro de ferro.

O maníaco do amendoim assobia, o mocinho rumina a bola, João sofre as penas do herói.

Agora a loira corre o fecho do vestido, a nudez entrevista: Eu sou Rosinha. Posso derreter o aço. Sei abrasar o corpo gélido.

— Rosinha... sei abrasar... — insiste o eco suspiroso do mocinho.

Rebenta a bola de goma, esbarra-lhe no joelho e, entre as cadeiras vazias, senta-se ao lado do chupador de dente. Na tela a heroína furiosa rasga a camisa do tipo, descobre o ombro sardento. Unhas rapaces enterram-se — apesar do metal — na carne fofa.

João estremece: uma ratazana ali no corredor? Prestes a levantar-se, enxuga a mão no joelho.

À sua frente cochicha o moço com o vizinho, que deixa de assobiar. João não ergue o pé, e mordendo o uivo, segue a corridinha da ratazana. Virá, em seu passeio tonto, enroscar-se no sapato e atarantada subir na perna?

No silêncio da sala escuta o alarido do peito. O guarda não tosse, o maníaco não assobia, apenas o crepitar das cascas, agora mais perto.

Violado o santuário, outra vez em pânico: uma gota de suor brinca-lhe na pálpebra. Perdido com as vozes sem respostas: Onde está minha casa, minha mulher onde está? E onde estão afinal os Natais de antanho?

Luta com a imagem na tela, repete em voz baixa a legenda. Surgem das cadeiras vazias as filhas, tão pálidas, meu Deus, camisolinha em farrapos, descalças, a vagar gementes no deserto. Chorosa, indaga a menor, sem vê-lo na penumbra: Onde foi papai? Que fim o levou?

Por mais aflito, não pode sair — ainda não, há que esperar a passagem do Natal. Ficará até a explosão da última bomba. Tudo menos o quarto do hotel, medroso de certa gaveta, entre as meias sem pares o brilho da navalha...

Ali no cineminha pode esconder-se de si mesmo. Rei da terra, que foi feito de quem ele era? Sem mover a cabeça, relanceia o olho no corredor: as dores do mundo trazidas no focinho úmido da rata piolhenta.

Espavorido, o pé plantado nas cascas de amendoim — a ratazana que belisca a barra da calça?

Lá fora os sinos, buzinas, gritos de bêbados.

— Outro de menos — resmunga João. — Deste eu estou livre.

Passada a hora pior, eis que é um homem. Está salvo daquele Natal. Outro não haverá antes de um ano inteiro.

 
Texto publicado no livro "Desastres do Amor", Editora Record - Rio de Janeiro, 1993, foi extraído de "Contos para um Natal brasileiro", Relume Dumará/IBASE - Rio de Janeiro, 1996, pág. 121.

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