28 de junho de 2011

Minha Mãe - Vinicius de Moraes

Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doido ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora.  Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fonte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.

Aninha-me em teu colo como outrora
Dize-me bem baixo assim: — Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão. que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, meu filho, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu

Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique
Afugenta este espaço que me prende
Afugenta o infinito que me chama
Que eu estou com muito medo, minha mãe. 

O poema acima foi extraído do livro "Vinicius de Moraes - Poesia completa e prosa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1998, pág. 186.

22 de junho de 2011

O homem que viu o lagarto comer seu filho - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO

Era uma noite de terça-feira, e eles viam televisão deitados na cama. Quase uma da manhã, estava quente. Ele levantou-se para tomar água. A casa silenciosa, moravam num bairro tranqüilo. Não havia ruídos,poucos carros. Ao passar pelo quarto das crianças, resolveu entrar. Empurrou a porta e encontrou o bicho comendo o menino mais velho, de três anos e meio. Era semelhante a um lagarto e, na penumbra, pareceu verde. Paralisado, não sabia se devia entrar e tentar assustar o animal, para que ele largasse a criança. Ou se devia recuar e pedir auxílio. Ele não sabia a força do bicho, só adivinhava que devia ser monstruosamente forte. Ao menos, forte demais para ele, franzino funcionário. E meio míope, ainda por cima. Se acendesse a luz do corredor, poderia verificar melhor que tipo de animal era. Mas não se tratava de identificar a raça e sim de salvar o menino. Ele tinha a impressão de que as duas pernas já tinham sido comidas, porque os lençóis estavam empapados de sangue. E a calça do pijama estava estraçalhada sob as garras horrendas do bicho repulsivo. Como é que uma coisa assim tinha entrado pela casa adentro? Bem que ele avisava a mulher para trancar portas. Ela esquecia, nunca usava o pega ladrão. Qualquer dia, em vez de um bicho, haveria um homem roubando tudo, a televisão colorida, o liquidificador, as coleções de livros com capas douradas, os abajures feitos com asas de borboletas, tão preciosos. Pensou em verificar as portas, se estavam trancadas. Porém, percebeu um movimento no animal, como se ele tentasse subir para a cama. Talvez tivesse comido mais um pedaço do menino. Precisava intervir. Como? Dando tapinhas nas costas do lagarto — não lagarto? Não tinha antas em casa e o cunhado sempre dizia que era coisa necessária. Nunca se sabia o que ia acontecer. Ali estava a prova. Queria ver a cara do cunhado, quando contasse. Não ia acreditar e ainda apostaria duas cervejas como tal animal não existia. Pode, um lagartão entrar em casa através de portas fechadas e comer crianças? Olhou bem. Comer crianças não era normal, nem certo. Devia ser uma visão alucinada qualquer. Não era, O bicho mastigava o que lhe pareceu um bracinho e o funcionário teve um instante d ternura ao pensar naqueles braços que o abraçavam tanto, quando chegava do emprego à noite. Urna faca de cozinha poderia ser útil? Mas quanto o bicho o deixaria se aproximar, sem perigo para ele, o homem? Tinha de impedir o lagarto de chegar à cabeça. Ao menos isso precisava salvar. Não conseguia dar um passo, sentia-se pregado à porta. Preocupava-se. Todavia não se sentia culpado. Era uma situação nova para ele. E apavorante. Como reagir diante de coisas novas e apavorantes? Não sabia. Preferia não ter visto o lagarto, encontrar a cama vazia, as roupas manchadas de sangue. Pensaria em seqüestro ou coisas assim que lia nos jornais. Seqüestro o intrigaria, uma vez que ganhava pouco mais de dois salários mínimos e não tinha acertado na loteria esportiva. Era apenas um funcionário dos correios que entregava cartas o dia todo e por isso tinha varizes nas pernas. Se gritasse, o lagarto iria embora? Continuou pensando nas coisas que podia fazer, até que a mulher chamou, uma, duas vezes. Depois ela gritou e ele recuou, sempre atento para saber quanto o bicho tinha comido do filho. À medida que recuou perdeu a visão do quarto. Sentindo-se aliviado, pelo que não via. A mulher chamava e ele pensou: o menino não chorou, não deve ter sofrido. Voltou ao quarto ainda com esperança de salvá-lo pela manhã e decidiu nada dizer à mulher. Apagaram a luz, ele se ajeitou, cochilou. Acordou sentindo um cheiro ruim e quando abriu os olhos viu sobre seu peito a pata, parecida com a do lagarto. Paralisado, não sabia se devia tentar as sustar o animal, ou tentar sair da cama e pedir auxílio. Pelo peso da pata, o bicho devia ser monstruosamente forte. Ao menos, forte demais para ele, franzino funcionário. Aí se lembrou que tinha dois sacos de cartas a entregar, era época de Natal e havia muitos cartões das pessoas para outras pessoas dizendo que estava tudo bem, felicidades. Tinha que tirar este bicho de cima. Não, hoje não haveria entregas. Nem amanhã, por muito tempo. O lagarto estava com metade de sua perna dentro da boca.

O texto acima foi extraído do livro "Os melhores contos de Ignácio de Loyola Brandão", seleção de Deonísio da Silva, Global Editora — São Paulo, 1993, pág. 117.

14 de junho de 2011

13 de junho de 2011

123° Aniversário de Fernando Pessoa

“Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que
                                                                 ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar…
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…”

VIDA LONGA, POETA!

10 de junho de 2011

O desaparecido - Rubem Braga

Tarde fria, e então eu me sinto um daqueles velhos poetas de antigamente que sentiam frio na alma quando a tarde estava fria, e então eu sinto uma saudade muito grande, uma saudade de noivo, e penso em ti devagar, bem devagar, com um bem-querer tão certo e limpo, tão fundo e bom que parece que estou te embalando dentro de mim.
Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo mundo me achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando uma crônica muito antiga num dia sem assunto, uma crônica de rapaz; e, entretanto, eu hoje não me sinto rapaz, apenas um menino, com o amor teimoso de um menino, o amor burro e comprido de um menino lírico. Olho-me no espelho e percebo que estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido, estou parecendo um desses clichês sempre feitos com fotografias antigas que os jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão.
Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor. 



Do livro "A Traição das Elegantes", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1969.

7 de junho de 2011

(Viajando...) MEMORIALISMO FICCIONAL: Reconstruindo Paulo Honório e Bentinho através de suas memórias




um flash back
um flash back dentro de um flash back
                                                                       um flash back dentro de um flash back de
                                                                       um flash back
um flash back dentro do terceiro flash back
                                                                       a memória cai dentro da memória
pedraflor na água lisa
                                                                       tudo cansa (flash back)
menos a lembrança da lembrança da lembrança
                                                                       da lembrança
                                                           PAULO LEMINSKI, Vezes Versus Reveses.


MEMORIALISMO FICCIONAL: RECONSTRUINDO PAULO HONÓRIO E BENTINHO ATRAVÉS DE SUAS MEMÓRIAS

Ana Paula Miola

Para que serve a literatura? Para registro, dirão alguns. Para nada, dirão outros. Mas nós dizemos: a literatura serve para lembrar. Para não deixar cair no esquecimento a história, a geografia, os costumes, as fotografias, as sensações. A literatura é a consolidação da memória. É a maneira mais segura de registrar e guardar fatos que devem ser lembrados e relembrados.
É partindo deste pensamento que analisaremos uma das obras mais importantes da literatura brasileira, escrita por Graciliano Ramos: São Bernardo. Tendo-a como base, analisaremos as semelhanças da obra com Dom Casmurro de Machado de Assis. Para essa análise, vamos utilizar os conceitos da literatura memorialista ou memorialismo ficcional.
A literatura memorialista é constituída de biografias, autobiografias, correspondências, literatura de viagens e diários. São obras confessionais, subjetivas, onde o autor revela segredos, narra sua trajetória de vida ou a do personagem em questão e relata experiências vividas. Pode ser real ou ficcional. O memorialismo brasileiro tem seu auge na poesia e na prosa romântica.
Graciliano Ramos e Machado de Assis, autores das obras utilizadas neste artigo, dispensam apresentações. Verdadeiros mestres da literatura brasileira. Produziram algumas das mais importantes obras da nossa literatura: de Graciliano Ramos temos São Bernardo, Caetés e Vidas Secas; de Machado de Assis temos Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba.
Graciliano Ramos, natural de Quebrangulo, Alagoas, foi cronista, romancista, jornalista e político. Morou em várias localidades e contribui com sonetos, contos e crônicas a muitos jornais. Em 1936, é acusado de conspirar no levante comunista de 1935, e é exilado no Rio de Janeiro. Nesse período, escreve um de seus mais belos livros: Angústia, que lhe rendeu o Prêmio Lima Barreto. Sua obra é escrita em linguagem concisa, seca, “enxuta”. Tendo como cenário o Nordeste brasileiro, Graciliano trabalha com a subjetividade de seus personagens e a condição política em que se encontram. Descreve as paisagens nordestinas, focando nos problemas sociais, econômicos e políticos, remetendo duras críticas ao governo.
Machado de Assis, natural do Rio de Janeiro, foi, entre outras coisas, romancista, cronista, dramaturgo e poeta. Sua saúde frágil, a epilepsia e a gagueira, não o impediram de trabalhar em jornais e publicar obras românticas e poemas. Escreveu obras que marcaram o início de escolas literárias, como, por exemplo, Memórias póstumas de Brás Cubas, considerado o marco do realismo brasileiro. Fundou a Academia Brasileira de Letras. Sua obra, de forte cunho social, tem como características o pessimismo, a denúncia das imoralidades humanas, o humor, a ironia e a frequente intervenção do narrador. Machado escrevia a verdade sobre o ser humano.
Nas obras em questão, São Bernardo e Dom Casmurro, o memorialismo se apresenta de maneira ficcional, já que não se trata de uma biografia verídica.
São Bernardo é escrito com dois tipos de memórias: as memórias de Dom Casmurro e as memórias do próprio narrador, Paulo Honório. Já no início do romance Paulo Honório, como Bentinho, sente a necessidade de explicar o porquê do livro. Ao contrário de Bentinho, que vive na capital, em meio a pompas, teatros e mulheres, e encontrou tempo suficiente para pensar na escrita de suas memórias, Paulo Honório, homem trabalhador, capitalista empreendedor, que só almeja o sucesso de sua propriedade, “encomendaria” a escrita das suas. Seu livro seria escrito pela “divisão do trabalho”, e já nesse momento percebemos sua veia capitalista. Ao constatar que os designados ao trabalho não escreviam conforme mandava, dispensa todos e resolve ele mesmo escrever.
 
“Tenciono contar a minha história. Difícil. Talvez deixe de mencionar particularidades úteis, que me pareçam acessórias e dispensáveis. Também pode ser que, habituado a tratar com matutos, não confie suficientemente na compreensão dos leitores e repita passagens insignificantes. De resto isto vai arranjado sem nenhuma ordem, como se vê. Não importa. Na opinião dos caboclos que me servem, todo o caminho dá na venda.” (RAMOS. 2010. P. 7)

 Paulo Honório continua, afirmando que seu grau de instrução é pouco e precário para a escrita literária, já que seus estudos nunca foram além de livros de zootecnia e agropecuária. E a lembrança de Madalena o faz pensar que “se possuísse metade da instrução” dela “encoivarava isto brincando” (RAMOS. 2010. P 8). Importante lembrarmos que Paulo Honório aprendeu a ler e escrever na cadeia, com Joaquim sapateiro. Mas, ao longo da sua narrativa, o leitor percebe que Paulo Honório é um homem instruído e sua escrita é lírica, poética, dotada de muita beleza.
Em Dom Casmurro, Bentinho também explica a escrita de suas memórias:

“Quis variar, e lembrou-me escrever um livro.(...) Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras?... (...)Deste modo, viverei o que vivi (...)” (ASSIS. E-book. P. 2)
  
Ao contrário de Bentinho, que utiliza o apelido que um poeta lhe designa para nomear seu livro, Paulo Honório dá ao seu livro de memórias o nome de sua propriedade: São Bernardo. São Bernardo foi para Paulo Honório o que de mais importante ele possuía. “O meu fito na vida foi apossar-me das terras de S. Bernardo.” (RAMOS. 2010. P. 8). Cada um à sua maneira, dedicou o título do livro àquilo que julgava importante.
Mais um traço de Dom Casmurro em S. Bernardo é notável quando, qualquer ação realizada por Paulo Honório se dá após o pio da coruja. Por exemplo, ao dispensar os amigos que o ajudariam na escrita do livro, Paulo Honório desiste de escrever, mas, um dia qualquer, ouve o pio da coruja e inicia a escrita das memórias. É também o pio da coruja que desperta no fazendeiro as lembranças de Madalena. No caso de Bentinho, que tenciona escrever um livro, mas não o faz de imediato, isso só acontece quando os bustos na parede de sua casa lhe “falam” que o faça.
A personagem feminina é outro fator importante (talvez o mais importante) nos dois romances. Em Dom Casmurro Bentinho e Capitu se amam desde a juventude.
   
“(...) Também adverti que era fenômeno recente acordar com o pensamento em Capitu, e escutá-la de memória, e estremecer quando lhe ouvia os passos. Se se falava nela, em minha casa, prestava mais atenção que dantes, e, segundo era louvor ou crítica, assim me trazia gosto ou desgosto mais intensos que outrora, quando éramos somente companheiros de travessuras. Cheguei a pensar nela durante as missas daquele mês, com intervalos, é verdade, mas com exclusivismo também.”’ (ASSIS. E-book. P. 11)
                                                                                                            
Bentinho está fadado ao seminário, devido a uma promessa feita pela mãe. E o amor entre ele e Capitu fica ameaçado.
Em S. Bernardo, após se apossar das terras que tanto almejava, Paulo Honório acorda uma manhã pensando em casamento. “Amanheci um dia pensando em casar. Foi uma ideia que me veio sem que nenhum rabo de saia a provocasse. Não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é bicho esquisito, difícil de governar.” (RAMOS. 2010. P. 43). E então, Paulo Honório cogita algumas possibilidades de moças para realizar o casamento. “Não me sentia, pois, inclinado para nenhuma: o que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de S. Bernardo.” (RAMOS. 2010. P. 43). Após algumas tentativas frustradas de criar em sua mente o ideal de mulher, opta por D. Marcela, filha do juiz. Vai então, a casa do juiz para analisar melhor o empreendimento que estava prestes a fazer. Chegando lá, se depara com D. Marcela, uma senhora magra e uma loirinha, Madalena. “Comparei as duas, e a importância da minha visita teve uma redução de cinquenta por cento.” (RAMOS. 2010. P. 48).
O casamento entre Madalena e Paulo Honório acontece. A diferença entre Bentinho e Capitu, está justamente na falta de amor que uniu Paulo Honório e Madalena, cujo casamento era um negócio. Mas, Paulo Honório foi se afeiçoando a esposa. “Comecei a fazer nela algumas descobertas que me surpreenderam.” “Imaginei-a uma boneca de escola normal. Engano.” (RAMOS. 2010. P. 72).
Voltemos a Dom Casmurro. Ainda no seminário, Bentinho conhece aquele que seria seu melhor amigo: Escobar. Em visitas à família, Bentinho apresenta Escobar à Capitu, que fica desgostosa do amigo. Estando no seminário, vez ou outra Bentinho recebia notícias de Capitu. Algumas não o agradavam, mas a moça sempre explicava-se de maneira coerente, minimizando qualquer desconfiança. Após formar-se, Bentinho regressa e casa-se com Capitu.

“Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor pegue em si, morto de esperar, e vá espairecer a outra parte; casemo-nos. Foi em 1865, uma tarde de março, por sinal que chovia. Quando chegamos ao alto da Tijuca, onde era o nosso ninho de noivos, o céu recolheu a chuva e acendeu as estrelas, não só as já conhecidas, mas ainda as que só serão descobertas daqui a muitos séculos.” (ASSIS. E-book. P. 93)
 
 Os dois narradores, Paulo Honório e Bentinho, casam-se. Mas, ambos descobrem em suas amadas personalidades, ações e pensamentos desconhecidos até então.
Paulo Honório casa-se com uma professora, instruída e de boa educação. Sendo ele um bruto, homem capitalista cujo grande objetivo de vida sempre foi possuir bens e fazer dinheiro, entra em muitos conflitos com os trabalhadores da fazenda, agride-os verbalmente e fisicamente, não tolera desobediência. Para possuir as terras de S. Bernardo, Paulo Honório utilizou-se de métodos nem sempre corretos. E assim seguiu sua vida. Madalena, ao se deparar com um homem capitalista, bruto e violento, entra em conflito com Paulo Honório. Ao contrário dele, Madalena era uma humanista, que se preocupava com o ser humano, com os trabalhadores. Paulo Honório preocupava-se com o “ter” e Madalena com o “ser”.
Essas diferenças geraram muitos conflitos entre o casal. Mesmo grávida, Paulo Honório não poupava a esposa de brigas e conflitos diários. Esses conflitos se agravam quando Paulo Honório passa a sentir um ciúme doentio da esposa. Ao vê-la conversando com os empregados, acreditava que ela realmente o traísse.

“Mais tarde, no escritório, uma ideia indeterminada saltou-me na cabeça, esteve por lá um instante quebrando louça e deu o fora. (...) Interrompi a leitura da carta que tinha diante de mim e, sem saber por quê, olhei Madalena desconfiado. (...) Estremeci, e pareceu-me que a cara de Madalena estava mudada.” (RAMOS. 2010. P. 96)

  As brigas entre o casal continuaram, até mesmo após o nascimento do filho. Para Paulo Honório, Madalena era sabida demais, inteligente em demasia, e isso o deixava intrigado. Olhava para a esposa e a via promiscuamente, se oferecendo aos trabalhadores da fazenda, sorrindo para o Nogueira, conversando em alto tom com Padilha. Imaginava que os homens esculhambassem sua imagem, sabendo de Madalena muito mais do que ele sabia.
Sobre o filho, poucas são as informações fornecidas por Paulo Honório:

“Afastava-me lento, ia ver o pequeno, que engatinhava pelos quartos, às quedas, abandonado. Acocorava-me e examinava-o. Era magro. Tinha os cabelos louros, como os da mãe. Olhos agateados. Os meus são escuros. Nariz chato. De ordinário as crianças têm o nariz chato. Interrompia o exame, indeciso: não havia sinais meus; também não havia os de ouro homem.” (RAMOS, G. 2010. P. 105)
  
Em Dom Casmurro, após dois anos de casado, Bentinho declara que tudo ia bem, exceto o fato de ainda não terem um filho. A amizade entre ele e Escobar havia se fortalecido, assim como a amizade entre a esposa de Escobar e Capitu. Até que, finalmente, vem ao mundo o tão desejado filho de Bentinho e Capitu: Ezequiel.
Ezequiel cresce muito agitado, brincalhão. E uma brincadeira em especial começa a tirar o sono de Bentinho: Ezequiel imita com frequência os modos de Escobar. Assim, o ciúme de Bentinho torna-se doentio também.

“(...) sendo antes tão cioso dela, não continuei a sê-lo apesar do filho e dos anos. Sim senhor, continuei. Continuei, a tal ponto que o menor gesto me afligia, a mais ínfima palavra, uma insistência qualquer; muita vez só a indiferença bastava. Cheguei a ter ciúmes de tudo e de todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou desconfiança.” (ASSIS. E-book. P. 103)
 
Em visita à casa de Escobar e Sancha, sua esposa, Bentinho sente-se atraído pela mulher do amigo, quando percebe que ela também está seduzida por ele. No dia seguinte, o desejo não mais existia.  É quando acontece a tragédia: Escobar morre afogado. No enterro, Capitu consola Sancha, mas Bentinho parecia notar algo mais:

“Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas... As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã.” (ASSIS. E-book. P. 111)
  
Capitu e Bentinho estavam em paz novamente, mas Ezequiel crescia, e conforme crescia, aumentavam nele as semelhanças com o defunto Escobar. Os olhos, as feições, o corpo. O relacionamento do casal já não é mais o mesmo, e Ezequiel estando perto, os dois afastam-se. Colocaram-no, então, em um colégio.
Tanto em São Bernardo quanto em Dom Casmurro, os maridos pensam que as esposas deveriam morrer. Bentinho, comparando seu drama com o de Otelo, personagem de Shakespeare, chega a dizer quem Capitu deveria morrer em seu lugar. Paulo Honório escreve: “E se eu soubesse que ela me traía? Ah! Se eu soubesse que ela me traía, matava-a, abria-lhe a veia do pescoço, devagar, para o sangue correr um dia inteiro.” (RAMOS. 2010. P. 114) Em outra passagem: “Afirmei a mim mesmo que matá-la era ação justa. Para que deixar viva mulher tão cheia de culpa? Quando ela morresse, eu lhe perdoaria os defeitos.” (RAMOS. 2010. P. 124). Bentinho resolve se matar, mas não consegue. Paulo Honório, por sua vez, percebe que a mulher está cada dia mais magra e pálida.
Paulo Honório continua agredindo verbalmente Madalena. A última briga se dá por conta de uma carta que a esposa escrevia. Mal sabia Paulo Honório que seria a última briga.
Bentinho resolve separar-se da esposa. Antes disso, porém, precisa tirar a dúvida da traição de sua cabeça:
 
“Capitu recompôs-se; disse ao filho que se fosse embora, e pediu-me que lhe explicasse...
  — Não há que explicar, disse eu. 
  — Há tudo; não entendo as tuas lágrimas nem as de Ezequiel. Que houve entre vocês?
(...)
— Que não é meu filho.
Grande foi a estupefação de Capitu, e não menor a indignação que lhe sucedeu, tão naturais ambas que fariam duvidar as primeiras testemunhas de vista do nosso foro.
— A separação é coisa decidida, redargüi, pegando-lhe na proposta. Era melhor que a fizéssemos por meias palavras ou em silêncio; cada um iria com a sua ferida. Uma vez, porém, que a senhora insiste, aqui vai o que lhe posso dizer, e é tudo.
Não disse tudo; mas pude aludir aos amores de Escobar sem proferir-lhe o nome. Capitu não pôde deixar de rir, de um riso que eu sinto não poder transcrever aqui; depois, em um tom juntamente irônico e melancólico: 
— Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!
Concertou a capinha e ergueu-se. Suspirou, creio que suspirou, enquanto eu, que não pedia outra coisa mais que a plena justificação dela, disse-lhe não sei que palavras adequadas a este fim. Capitu olhou para mim com desdém, e murmurou:
— Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se? É natural; apesar do seminário, não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisto; não nos fica bem dizer mais nada.” (ASSIS. E-book. P. 121)
  
Capitu, Bentinho e Ezequiel viajam para a Europa. Capitu se instala na Suíça com o filho e Bentinho retornar ao Brasil. Correspondem-se por cartas. Anos mais tarde, Bentinho recebe a visita do filho já crescido e deveras parecido com Escobar:
 
“Conhece-me pelos retratos e correu para mim. Não me mexi; era nem mais nem menos o meu antigo e jovem companheiro do seminário de São José, um pouco mais baixo, menos cheio de corpo e, salvo as cores, que eram vivas, o mesmo rosto do meu amigo. (...) Era o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar. Era o meu comborço; era o filho de seu pai.” (ASSIS. E-book. P. 125)

 Capitu morrera. Ezequiel conta que falava muito de Bentinho. Morrera bonita.
O filho viaja para cursar a universidade, e tempo depois Bentinho recebe a notícia de sua morte.
O desenrolar da história de Paulo Honório e Madalena se dá também de maneira trágica. A carta que gerara briga entre o casal, era, na verdade, uma carta de despedida. A mesma carta que a incriminou, inocenta-a de qualquer suspeita, e Madalena suicida-se.

 “Entrei apressado, atravessei o corredor do lado direito e no meu quarto dei com algumas pessoas soltando exclamações. Arredei-as e estaquei: Madalena estava estirada na cama, branca, de olhos vidrados, espuma nos cantos da boca. Aproximei-me, tomei-lhe as mãos, duras e frias, toquei-lhe o coração, parado. Parado.” (RAMOS. 2010. P. 128)

 Paulo Honório e Bentinho acabam sozinhos. Ao final da leitura dos romances, outra semelhança entre as obras é perceptível: os narradores escrevem para entender o que deu errado em suas vidas.
Bentinho termina sua narrativa com a certeza de que jamais encontraria amor semelhante ao de Capitu, jamais amaria alguém como a ela. Mas, a dúvida da traição está presente até mesmo no último parágrafo do romance:
 
“E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve!” (ASSIS. E-book. P. 128)
 
Em São Bernardo, Paulo Honório termina sua narrativa pensando em Madalena, no que viveram, nas brigas que tiveram e no seu espírito humanista, tão contraditório ao dele. Paulo Honório refaz sua trajetória ao lado de Madalena para compreender suas ações, o suicídio da esposa e a condição em que se encontra agora. A memória lhe trazia Madalena: “E os meus passos me levavam para os quartos, como se procurassem alguém.” (RAMOS. 2010. P. 139)
A decadência de Paulo Honório se dá em todos os sentidos: a propriedade, que era seu maior orgulho e fonte de renda, está abandonada, decadente; sua mediocridade como ser humano e como capitalista, levou ao suicídio daquela que escolheu para esposa; o herdeiro de suas terras, seu filho, não lhe desperta amor e, finalmente, o homem poderoso que foi, termina sozinho, escrevendo suas memórias para compreender a ele mesmo.

 “Cinqüenta anos perdidos, cinqüenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada. Cinqüenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê!” (RAMOS. 2010. P. 140)

Escrever, para Paulo Honório, não é apenas retornar ao passado, como era para Bentinho, mas encontrar-se nesse passado como um ser humano. Ou seja, o papel da memória neste contexto vai muito além de simplesmente reviver essas memórias, torna-se uma necessidade do inconsciente do narrador de exprimir-se, de fazer-se valer novamente.
Paulo Honório torna-se consciente de si mesmo, de sua condição: “Hoje não canto nem rio. Se me vejo ao espelho, a dureza da boca e a dureza dos olhos me descontentam.” (RAMOS. 2010. P.142). Reforça a imagem do monstro que se transformou, transfigurado pelo ciúme e pelas mudanças sociais que ocorrem, paralelamente, no romance. “Não consigo modificar-me, é o que me aflige.” (RAMOS. 2010. P.143) Madalena se faz presente em toda a sua narrativa final, como que delimitando seus pensamentos, colocando nele a consciência de seus atos e personalidade:
 
“Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.
Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins.
E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte!
A desconfiança é também consequência da profissão.
Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.” (RAMOS. 2010. P.144)
 
Paulo Honório escreve seu romance solitário, e finaliza-o de tal forma: “E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.” (RAMOS. 2010. P.145)
A semelhança principal entre as duas obras analisadas, é a memória dos seus narradores. Ambos terminam suas histórias com a dúvida da traição. Em São Bernardo essa dúvida não é tão explícita quanto em Dom Casmurro, cujo tema principal é a dúvida. Escrever suas memórias, é uma maneira de salvação para os narradores. Bentinho toma consciência de sua solidão, enquanto Paulo Honório toma consciência do amor que sentiu por Madalena, e desperdiçou.
São Bernardo retrata a política da época, os costumes, a evolução tecnológica e as classes sociais existentes no Brasil. Seu cunho social é fortíssimo. Na relação entre Paulo Honório e Madalena, que representam dois ideais diferentes, o capitalista e a humanista, a questão política se evidencia. Paulo Honório, o capitalista que perde todo seu poder, que presencia a queda de sua propriedade, perde também ele próprio o seu valor. A política o corrompeu, fez com que se tornasse um homem desumano, que busca na literatura uma fuga.
O processo da escrita, muitas vezes comentado pelos narradores, confirma a importância que a literatura teve nas suas vidas. Isso não fica claro para os narradores, é algo inconsciente. Mesmo para Paulo Honório, pouco instruído nesse sentido, a literatura torna-se fundamental, de maneira inconsciente. Não fosse o poder da escrita, as memórias e lembranças dos narradores teriam se perdido com o tempo. A Paulo Honório e Bentinho nada mais resta, somente a escrita, talvez ela os devolva a paz que não encontraram na vida real e aquiete seus corações.
Como escreveu, certa vez, o grande poeta chileno Pablo Neruda, em seu livro de memórias (que ironia) intitulado Confesso que vivi - Memórias: “Levaram o ouro e nos deixaram o ouro... Levaram tudo e nos deixaram tudo... Deixaram-nos a palavra.”
Graciliano Ramos e Machado de Assis, ou Paulo Honório e Bentinho, como queiram, deixaram-nos sim, tudo. Palavras, memórias e a certeza de que, na literatura, toda história tem seu valor.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, M. Dom Casmurro. Livro Digital. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv00180a.pdf> Acesso em: 10 MAIO 2011.
BRAGA, E.M.R. O papel da linguagem na análise dos pontos de vistas das personagens Paulo Honório e Madalena no romance São Bernardo. Disponível em: <http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=4392&cat=Ensaios&vinda=S> Acesso em: 20 MAIO 2011.
Disponível em: <http://www.infopedia.pt/$memorialismo> Acesso em: 17 MAIO 2011.
LOBO, A. As raízes de Paulo Honório: uma leitura de São Bernardo a partir de Raízes do Brasil. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/view/5991/4532> Acesso em: 15 MAIO 2011.
MELLO, M.S. Graciliano Ramos: modernista engajado. Disponível em:
NERUDA, P. Confesso que vivi – Memórias. Rio de Janeiro: Difusão Editorial, 1978.
RAMOS, G. São Bernardo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.
SOARES, E.G. Vozes sociais e cronotopo: uma análise discursiva do romance São Bernardo. Disponível em:<http://www.facef.br/novo/gedi/gedi_2008/GEDI_2008_vozes_sociais.pdf> Acesso em: 20 MAIO 2011.

Necrológio dos desiludidos do amor - DRUMMOND

    Os desiludidos do amor
    estão desfechando tiros no peito.
    Do meu quarto ouço a fuzilaria.
    As amadas torcem-se de gozo.
    Oh quanta matéria para os jornais.

    Desiludidos mas fotografados,
    escreveram cartas explicativas,
    tomaram todas as providências
    para o remorso das amadas.
    Pum pum pum adeus, enjoada.
    Eu vou, tu ficas, mas os veremos
    seja no claro céu ou no turvo inferno.

    Os médicos estão fazendo a autópsia
    dos desiludidos que se mataram.
    Que grandes corações eles possuíam.
    Vísceras imensas, tripas sentimentais
    e um estômago cheio de poesia...

    Agora vamos para o cemitério
    levar os corpos dos desiludidos
    encaixotados completamente
    (paixões de primeira e de segunda classe).

    Os desiludidos seguem iludidos,
    sem coração, sem tripas, sem amor.
    Única fortuna, os seus dentes de ouro
    não servirão de lastro financeiro
    e cobertos de terra perderão o brilho
    enquanto as amadas dançarão um samba
    bravo, violento, sobre a tumba deles.