28 de fevereiro de 2013

Laura - Fabrício Carpinejar

Ilustra de Eduardo Nasi
 
Eu e meu marido saímos cedo de casa. Ele acorda antes de mim. Nem o vejo: pressiona seus lábios em minha cabeça e parte para o curtume.

Às vezes exala de sua boca o aroma de café com leite. Eu gosto de ser beijada dormindo. A testa é a última porção do rosto que lavo na hora de acordar — preservo sua benção.
 
Não nos falamos durante o dia. Começo o expediente às 8h na fábrica de costura. O intervalo de almoço é de 45 minutos. Nossa vida é baixar o queixo e se concentrar em panos e couros.
 
Mário ainda trabalha longe, em outra cidade, chega em nossa residência depois da meia-noite. Preparo comidinha e guardo nas panelas. Nunca janto com ele.
 
Ele pressiona seus lábios em minha cabeça e dorme. Aprendeu a tirar a roupa sem me acordar. Imagino que seus sapatos são silenciosos; as mangas, esvoaçantes; os casacos, de pluma.
 
Sua nudez não pesa mais no colchão. Ele treinou desaparecer de mim.
 
É um homem que cuida de meu sono, já que não pode cuidar de minhas palavras.
 
Experimentamos a solidão do casamento. Aperto o forro dos bolsos para fingir sua mão na minha mão. Sua mão pesa igual à gaveta da cozinha.
 
Quando cruzamos um olhar no corredor, é uma janela. Ele não amaldiçoa o cansaço, o salário, a falta de esperança. Agradecemos a saúde para continuar.
 
Eu me habituei com o raso, é só pôr mais água no feijão.
 
Somos acostumados. Juntamos nossas economias para pagar a casinha. Há mês que sobra, arrumamos até um armário novo para o quarto, com prateleira para botar cobertas e lençóis. Pela primeira vez, tiramos as caixas de papelão debaixo da cama.
 
Meu homem é do mundo. Eu sou do mundo. Segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado sem ele. Sem trocar impressões ou pedir ajuda ou chorar. Sou quase uma viúva. Ele é quase um viúvo.
 
Mas jamais reclamo porque tenho meu domingo.
 
No domingo, nos acordamos no mesmo instante. E eu dou um beijo em sua testa.
 
Preparamos o mate e sentamos na varanda.
 
Ele me fala o que fez, o que pretende fazer, o que nunca fará.
 
O vento sopra em nossas oliveiras e ele pergunta se estou com frio.
 
Naquele momento, ele é meu homem, somente meu, de mais ninguém.
 
Quando ele é meu, eu também me pertenço.
 
São seis horas por semana em que não preciso dividi-lo. Cheiro suas golas, deito em seus ombros e penteio seus cabelos com as unhas.
 
Parece pouco, mas é toda a minha vida, por isso despertarei o resto dos meus minutos. Duvido que alguém seja mais feliz.
 
 
Texto publicado em: Vida Breve

14 de fevereiro de 2013

Neruda, um velho e latente amor...


Há outros dias que não têm chegado ainda,
que estão fazendo-se
como o pão ou as cadeiras ou o produto
das farmácias ou das oficinas
- há fábricas de dias que virão -
existem artesãos da alma
que levantam e pesam e preparam
certos dias amargos ou preciosos
que de repente chegam à porta
para premiar-nos
com uma laranja
ou assassinar-nos de imediato.

Esperemos - Neruda in Últimos Poemas