11 de janeiro de 2011

16/03/92 00:53

    Não tenho ideia do que causa isso. Aparece: uma certa ideia sobre os escritores do passado. E minhas ideias não são nem mesmo precisas, são apenas minhas, quase que totalmente inventadas. Acho que Sherwood Anderson, por exemplo, era baixinho e de ombros levemente encurvados. Provavelmente, tinha ombros retos e era alto. Não interessa. Eu o vejo do meu jeito. (Nunca vi uma foto dele.) Vejo Dostoievsky como um cara barbudo, grandão, com letárgicos olhos verde-escuros. Primeiro, ele era gordo demais, depois magro demais, depois gordo demais. Bobagem, com certeza, mas eu gosto da minha bobagem. Até vejo Dostoievsky como um cara que desejava garotinhas. Faulkner, vejo, em meio a uma certa penumbra, como um ranzinza e um cara com mau hálito. Gorky, como um cara que bebe escondido. Tolstoi, como um homem que tinha ataques de fúria por besteiras. Vejo Hemingway como um cara que dançava balé a portas fechadas. Vejo Celine como um cara que não dormia direito. Vejo e.e. cummings como um grande jogados de sinuca. Poderia continuar sem parar.
    Em geral, tinha essas visões quando era um escritor faminto, meio louco, incapaz de me adaptar à sociedade. Tinha pouca comida, mas muito tempo. Quem quer que fossem os escritores, eram mágicos para mim. Abriam portas de um jeito diferente. Precisavam de uma bebida forte ao acordar. A vida era demais para eles. Cada dia era como caminhar sobre cimento fresco. Fiz deles meus heróis. Me alimentava deles. Minhas ideias sobre eles me sustentavam no meu lugar nenhum. Pensar sobre eles era muito melhor do que lê-los. Como D.H. Lawrence. Que sujeitinho perverso. Ele sabia tanto que isso fazia com que ficasse possesso o tempo todo. Sensacional, sensacional. E Aldous Hexley... poder mental de sobra. Ele sabia tanto que isso lhe dava dor de cabeça.
    Me espreguiçava em minha cama de fome e pensava nesses caras.
    A literatura era tão... romântica. É.
    Mas os compositores e pintores também eram bons, sempre ficando loucos, se suicidando, fazendo coisas estranhas e abjetas. O suicídio parecia uma ideia tão boa. Eu mesmo tentei algumas vezes, falhei, mas cheguei perto, fiz umas boas tentativas. Agora, aqui estou com quase 72 anos. Meus heróis já se foram há muito e tive que viver com outros. Alguns dos novos criadores, alguns dos recém-famosos. Não são a mesma coisa para mim. Olho para eles, os escuto e penso, é só isso? Quero dizer, eles parecem estar numa boa... eles reclamam... mas eles parecem estar NUMA BOA. Não há loucura. Só os que parecem loucos são os que fracassaram como artistas e acham que o fracasso é culpa de forças exteriores. E criam muito mal, de forma horrível.
    Não tenho mais ninguém em quem me espelhar. Não consigo nem me espelhar em mim mesmo. Costumava entrar e sair de cadeias, costumava arrombar portas, quebrar janelas, beber 29 dias por mês. Hoje, sento em frente deste computador com o rádio ligado, ouvindo música clássica. Nem mesmo estou bebendo esta noite. Estou me resguardando. Pra quê? Será que posso viver até os 80, 90 anos? Não me importo de morrer... mas não neste ano, tá legal?
    Não sei, era diferente no passado. Os escritores pareciam ser mais... escritores. Coisas eram feitas. A Black Sun Press. Os Crosby. Me lembro tanto daquela época! Caresse Crosby publicou um dos meus contos na sua revista Portfolio, junto com Sartre, acho, e Henry Miller e acho que, talvez, Camus. Não tenho mais a revista. As pessoas me roubam. Levam minhas coisas quando bebem comigo. Por isso estou cada vez mais sozinho. De qualquer forma, outros devem ter saudades dos extraordinários anos 20, Gertrude Stein e Picasso... James Joyce, Lawrence e essa turma.
    Para mim, parece que não somos mais o que éramos. É como se tivéssemos gasto as opções, como se não conseguíssemos mais fazer alguma coisa.
    Sento aqui, acendo um cigarro, ouço música. Minha saúde está boa e espero estar escrevendo bem ou melhor que nunca. Mas tudo mais que leio parece tão... usado... é como um estilo reconhecido. Talvez eu tenha lido demais. Também, depois de décadas e décadas escrevendo (e escrevi um monte), quando leio outro escritor acho que posso dizer exatamente quando ele está fingindo, a mentira salta aos olhos, as resvaladas untuosas... Posso adivinhar qual será a próxima linha, o próximo parágrafo... Não há brilho, emoção, risco. É uma tarefa que aprenderam, como consertar uma torneira que pinga.
    Gostava mais quando conseguia imaginar grandeza nos outros, mesmo que nem sempre houvesse.
    Na minha cabeça, via Gorky em um cortiço, pedindo tabaco para o cara ao lado. Via Robinson Jeffers falando com um cavalo. Via Faulkner olhando para o último gole da garrafa. É claro, é claro, era bobo. Os jovens são bobos e os velhos, idiotas.
    Tenho que me adaptar. Mas para todos nós, mesmo agora, a próxima linha está sempre lá e pode ser a linha que finalmente consegue dar o recado, que diz tudo. Podemos dormir pensando nisso durante as lentas noites e esperar que aconteça.
    Provavelmente, somos tão bons hoje quanto aqueles filhos da puta do passado. E alguns dos jovens pensam sobre mim como eu pensava sobre eles. Eu sei, recebo cartas. Eu as leio e jogo fora. Estes são os monumentais anos 90. Existe a próxima linha. E a linha depois dessa. Até não haver mais nenhuma.
    É. Mais um cigarro. Depois, acho que vou tomar um banho e dormir.



Charles Bukowski em O Capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio

4 de janeiro de 2011

"Desde verdes anos, tentaram-me o eclipse e a economia dos esquemas. Exímio dos mais hábeis nos manejos de ausências, busquei apoio nos últimos redutos do zero. Foi a época em que eu mais prestigiei o silêncio, o jejum e o não. Você sabe com quem está falando? Cultivei meu ser, fiz-me pouco a pouco, constituí-me. Letras me nutriram desde a infância, mamei nos compêndios e me abeberei das noções das nações. Compulsei índices e consultei episódios. Olho noturno e diurno, palmilhei as letras em estradas: tropecei nas vírgulas, caí no abismo das reticências, jazi nos cárceres dos parênteses, o florete das exclamações me transpassou, enchi de calos a mão fidalga torcendo páginas. Em decifrar enigmas, fui Édipo; em rolar cogitações, Sísifo; em multiplicar folhas pelo ar, Outono. Lanterna à mão, bati a porta dos volumes mendigando-lhes o senso. E na noite escura das bibliotecas iluminava-me o céu a luz dos asteriscos. Matei um a um os bichos da Bíblia."

Leminski.