21 de junho de 2010

Bartleby x The Wall


Bartleby, o escriturário - Herman Melville
A história de Bartleby é muito desafiadora. Ao apresentar um personagem tão enigmático, o autor nos desafia a conhecer e penetrar nos extremos da mente e coração humanos.
Ao ser contratado num escritório para desempenhar a tarefa de copista, Bartleby é instalado ao lado de uma janela, cuja única visão que tinha, era da parede de tijolos do prédio à frente. Após três dias trabalhando sem parar, Bartleby surpreende seus colegas ao se negar a cumprir ordens, utilizando-se da famosa frase: "Prefiro não fazer." O chefe, surpreso com essa atitude, descobre que seu escritório serve de moradia a Bartleby.
A situação fica crítica, pois Bartleby passa a ser visto pelos clientes e pelos próprios colegas de trabalho como um absurdo ambulante, um estorvo. Mas nega-se a praticar qualquer tipo de ação, nega qualquer tipo de oferta que o chefe lhe faz para que saia de lá.
Conformado com a situação, o chefe muda de endereço, deixando Bartleby a olhar para o muro. Alguns dias depois, ao passar pela frente do prédio do ex-escritório, é surpreendido pelos moradores, suplicando que retire de lá seu ex-funcionário, que após a partida do chefe, nada fez a não ser ficar sentado na escada.
Bartleby se nega a sair do prédio. Nega qualquer tipo de ajuda. E é preso.
Na prisão, por não ser visto como delinqüente, pode vagar a vontade pelo pátio. E é isso que faz o dia todo, fica contemplando (assim como no escritório) a parede de tijolos que cerca a prisão, como se estivesse vendo a si mesmo, alguém para quem a vida não tem mais sentido. E Bartleby se entrega.


The Wall - Pink Floyd
Pink é o personagem das músicas que compõem o álbum The Wall, da banda Pink Floyd, e o protagonista do filme com esse mesmo nome. Um menino cheio de traumas e problemas, que acaba se isolando do mundo, construindo um muro em torno de si mesmo. "Eu não preciso de braços ao meu redor. Não! Não pense que eu preciso de alguma coisa afinal." (Another Brick on The Wall).
O filme se desenvolve todo em torno das lembranças de um Pink já adulto.
Logo no começo do filme, podemos descobrir o que se passa na mente de Pink e o que há por trás daquele olhar sempre frio e distante. Em seguida, embalado por "Another Brick on The Wall II", Pink relembra a morte do pai, que é um dos fatos mais importantes para a formação da identidade do personagem. E é o primeiro tijolo do muro.

O segundo tijolo que Pink usa para construir seu muro é a educação opressora. Na cena em que o professor pega o caderno de Pink e lê em voz alta um poema que ele escreveu sobre a burguesia, carros novos cinco estrelas e times de futebol, e a classe toda ri, Pink imagina como seria uma revolução contra os professores, onde a escola seria queimada pelos alunos revoltados. Nessa parte do filme, as crianças aparecem cantando sobre a educação: "Quando crescemos e fomos à escola, havia certos professores que machucariam as crianças da forma que eles pudessem. Não precisamos de nenhuma educação, não precisamos de controle mental. Professores, deixem as crianças em paz. Tudo era apenas um tijolo no muro, todos são apenas tijolos no muro.". Essas crianças aparecem com máscaras, marchando em fileira para serem transformadas em carne moída. Isso comprova o que diz a música, a alienação das crianças, a obrigação de repetir o que o professor diz em classe, o respeito pelos professores, mesmo esses não tendo respeito pelos seus alunos. "Hei! Teacher! Leave us kids alone!"

Outro importante fato que contribuiu na construção do muro de Pink, é a superproteção da mãe, que pode ser vista em diversas partes do filme e na música "Mother" onde Pink a questiona: "Mãe, você acha que eu deveria construir o muro? Mãe, isto é apenas perda de tempo? (...) É claro que a mamãe vai ajudá-lo a construir o muro." Em diversas outras cenas, Pink lembra de sua mãe, e de como era bom estar com ela. Quando, por exemplo, descobre que foi traído por sua mulher, após tê-la tratado mal, ele lembra de sua mãe e deseja sua companhia. A partir desse momento, o filme é composto por simbolismos de difícil compreensão. A união de homem e mulher, que no caso de Pink foi abalada por uma traição, é mostrada em forma de flores, onde uma rosa (homem) e um hibisco (mulher) se acariciam, mas o hibisco abocanha a rosa, demonstrando que o homem foi devorado e vencido pela mulher, como ocorreu com Pink. E mais um tijolo é acrescentado no já alto muro de Pink Floyd: a dor de perder quem se ama.

É nesse momento que a emoção fala mais alto e Pink destrói seu apartamento, como forma de destruição do muro que ele mesmo está criando em volta de si, uma forma de destruir todos os responsáveis por seu sofrimento, afinal, todos são apenas tijolos no muro.

É quando resolve dar seu adeus ao mundo real e se enclausurar num mundo apenas dele. "Adeus mundo cruel, eu estou lhe deixando hoje." (Goodbye Cruel World).

Passa a vagar por esse mundo, onde encontra seu pai morto e ele mesmo num sanatório, imagem que o amedronta. Esse é o momento em que Pink reflete sobre todos os motivos que o levaram a se isolar da humanidade.

De volta ao mundo real, depila todo seu corpo, inclusive as sobrancelhas, e entra num estado de profunda reflexão, sentado em frente à televisão; pode-se pensar que ele está com um pé no mundo real e outro no seu mundo. Seus produtores musicais o encontram nesse estado (na verdade vão buscá-lo para um show), o medicam e aplicam uma injeção que no mundo real não surte efeito. No seu mundo, essa injeção lhe desperta, causando dor e angústia profundas, derretendo sua pele. Ao se livrar da pele derretida, aparece Pink recuperado vestido com um uniforme em estilo nazista, mas no lugar da suástica vê-se dois martelos, que simbolizam o desejo de quebrar o muro. Pois, apesar de ele mesmo ter sido o responsável por esse isolamento, foi algo inconsciente. Pronto para o espetáculo, Pink reúne uma multidão de pessoas para assistir ao seu show. Essas pessoas repetem todos os seus movimentos e cantam cada palavra.

Nesse momento, o muro se fecha completamente em volta de Pink, e ele imagina uma batalha entre martelos e muros. O filme passa novamente aos simbolismos, e vemos Pink jogado no canto do muro, em forma de um boneco de pano velho e inutilizado. É a hora de seu julgamento. O juiz representa a sociedade, o mundo externo, que acusa Pink de ser o culpado pela construção do muro. "A prova apresentada à corte é incontestável. Em todos os meus anos de magistrado, nunca ouvi de um caso de alguém que merecesse tanto a pena máxima. A forma como fez sofrer sua mãe e esposa me enche de vontade de defecar." (The Trial). Ao mesmo tempo em que relata o julgamento de Pink, "The Trial" fala das pessoas que ficaram do outro lado do muro e que sofreram junto com Pink, mas não tiveram sensibilidade de entender o que estava acontecendo com ele, porque para eles, assim como para a sociedade, Pink era quem estava errado, e não o mundo à sua volta. "Desde que, meu amigo, você revelou o seu medo mais profundo, eu lhe sentencio a se expor aos seus semelhantes. Derrubem o muro!" E o muro é derrubado pela sociedade.

Assim como Bartleby, Pink se enclausurou num mundo apenas dele, criado na sua mente, onde ninguém poderia entrar. Nesse mundo, todas as dores de Pink deveriam sumir, e não é o que acontece. Os dois personagens vêem como única saída para as diferenças do mundo real, se trancar entre quatro paredes construídas por eles mesmos. No caso de Bartleby, não sabemos o que o levou a isso, quais seus traumas e angústias, mas sabemos que, ao olhar fixamente para uma parede, estava vendo a si mesmo. Cada tijolo, uma dor, um peso. E Pink, entre quatro paredes, estava seguro, não de si mesmo, mas dos outros.

Pink era dono de uma mente perturbada e cheia de angústias. Assim como Bartleby. O mundo em que vivem é de dor, angústia e injustiças. No caso de Bartleby, o centro comercial de uma cidade, um ambiente de trabalho hostil, um trabalho precário, e antes disso, trabalhador do Departamento de Cartas Devolvidas, que segundo o autor "não seriam como homens mortos?". E Pink, vivenciando de perto, desde criança, todas as desigualdades e maldades do mundo, com a morte do pai, um sistema de educação opressor e violento, uma mãe sufocadora, traição, guerra. Guerra essa, travada no interior de Pink, no seu coração, contra algo que nem ele sabia ao certo o que era. Uma profunda desilusão.

O destino desses heróis é, inevitavelmente, a morte. Bartleby, que sempre viveu preso, seja num escritório com vista para uma parede de tijolos, seja nele mesmo, se entrega, se entrega à vida, e morre solitário e incompreendido, olhando para o muro, vendo ele mesmo. Pink, ao ser sentenciado à pena máxima, que era ser exposto ao mundo real novamente, vê seu muro ser destruído, e não por ele mesmo, mas sim por aqueles a quem ele mais temia: os outros. Não morre fisicamente, mas ao ser destruído o único local onde se sentia vivo, também morre.

O muro de Pink é destruído. O muro de Bartleby, o destrói.

2 de junho de 2010

"Os caminhos para Deus"


Em seu livro "O que faz do brasil, Brasil", Roberto DaMatta explora diversos aspectos da cultura brasileira, para tentar definir o Brasileiro. No capítulo entitulado "Os caminhos para Deus", aponta ironicamente as formas como os brasileiros se comunicam com Deus, santos e o "outro mundo".
Segundo ele, há uma necessidade de se acreditar em algo superior, em algo maior que nós, e essa seria uma maneira de entender o mundo, entender as diferenças, o porquê de tantos infortúnios, tanta dor. E, ao mesmo tempo, suplicar que Deus ilumine a Terra e dê forças aos mortais. Nesse caso, a religião serviria para explicar, para questionar e responder.
Para compartilhar tudo que a religião nos oferece, temos a Igreja, uma entidade puramente santa, onde as pessoas se reúnem para venerar o mesmo Deus e os mesmos santos, para comungar o corpo de Cristo e entoar preces, que quanto mais fortes e cheias de adornos, mais rápido chegam aos ouvidos do Criador. É também a Igreja, o local onde batizamos nossos filhos, onde casamos, selando assim, laços eternos com a família e com Deus.
Há no Brasil uma variedade infinita de religiões, cada uma com suas tradições, cultos e diferentes formas de veneração. Todas têm como foco a idéia de que existe uma relação entre nós, seres humanos mortais, e os deuses; a possibilidade de comunicação com esse outro mundo, no qual não teríamos mais problems, nem dores, angústias e onde estaríamos lado a lado com Deus.
O brasileiro, como já sabemos, acha que a solução de seus problemas está bem acima de nós, nas mãos de Deus e seus "ajudantes celestiais", daí vem a intimidade que as pessoas têm com os santos. Cada um é devoto de um santo, seja ele o casamenteiro, o das causas urgentes, das impossíveis ou aquele que nos ajuda a encontrar objetos perdidos. Creio que todo esse folclore que se criou em torno desses mártires, não é à toa, pois eles foram pessoas normais, igual a qualquer um de nós, e que dedicaram sua vida para fazer o bem, servir a Deus... como, então, não amá-los? Além disso, os santos são as divindades que acreditamos estarem mais perto de nós, mais "acessíveis". São representantes desse mundo e do outro, nossos protetores. Ter uma gruta no jardim de casa é estar protegido. Ter uma santa ceia na parede da sala é uma maneira de demonstrar que na sua casa não há espaço para o Satanás. O que ninguém admite, mas todo mundo sabe, é que o inferno é aqui mesmo, na Terra. E que, mesmo sua casa estando cheia de santos e bíblias, sem uma cerca elétrica no portão e um pit-bull de segurança, não se vive em paz.
Para DaMatta são muitas as formas de se chegar a Deus, o que não deixa de ser verdade, levando em conta tudo que vemos e vivenciamos na nossa cultura. Ninguém é totalmente descrente de que existe sim, uma entidade superior, que nos guia e ilumina. Mas vamos ser honestos com nós mesmos: Deus deve estar cansado de nós. Pois ao fazer o homem à sua imagem e semelhança, pensava estar criando um poço de sensibilidade e amor. O que não ocorreu, como podemos constatar... Precisamos de dinheiro para quitar algumas dívidas: Deus devia ter criado a árvore do dinheiro. Precisamos de companhia: acenda velas à Santo Antônio. E assim, sempre que algo nos falta, recorremos ao Todo Poderoso.
No último parágrafo, DaMatta resume o capítulo todo em poucas e sábias palavras, ao dizer que o brasileiro acredita num outro mundo, onde tudo seria possível, e onde tudo que aqui na Terra não funciona, passa a funcionar, como a lei do retorno: faça o bem para colher o bem. Ou seja, vivemos uma vida de sofrimento e desalento, mas isso não nos faz desacreditar que tudo dará certo, mesmo sendo após a morte. É uma esperança, mesmo que vã. O céu à brasileira está a nossa espera, rezemos então, para que seja mesmo um lugar assim tão mágico, capaz de exterminar os problemas e as dores das pessoas, caso contrário, a decepção será tamanha, que Deus vai ser chutado do "Paraíso".



Ana Paula Miola.