29 de setembro de 2011





Documentário incrível que, além de afirmar o poder da leitura na vida das pessoas, levanta questões de cunho social e psicológico: como você convive com as diferenças? De que maneira o preconceito tapa seus olhos e ouvidos diante de uma realidade à parte da sua? Como e porque essa realidade se aproxima cada vez mais de você?
A cultura vista como um local de troca, onde todos compartilham conhecimento, despidos de preconceitos e estigmas.

25 de setembro de 2011

Minsk - Graciliano Ramos

Quando tio Severino voltou da fazenda, trouxe para Luciana um periquito. Não era um cara-suja ordinário, de uma côr só, pequenino e mudo. Era um periquito grande, com manchas amarelas, andava torto, inchado, e fazia: - "Eh! Eh!".
Luciana recebeu-o, abriu muito os olhos espantados, estranhou que aquela maravilha viesse dos dedos curtos e nodosos de tio Severino, deu um grito selvagem, mistura de admiração e triunfo. Esqueceu os agradecimentos, meteu-se no corredor, atravessou a sala de jantar, chegou à cozinha, expôs à cozinheira e a Maria Júlia as penas verdes e amarelas que enfeitavam uma vida trêmula. A cozinheira não lhe prestou atenção, Maria Júlia franziu os beiços pálidos num sorriso desenxabido. Luciana desorientou-se, bateu o pé, mas receou estragar o contentamento, desdenhou incompreensões, afastou-se com a idéia de baptizar o animalzinho. Acomodou-o no fura-bôlo e entrou a passear pela casa, contemplando-o, ciciando beijos, combinando sílabas, tentando formar uma palavra sonora. Nada conseguindo, sentou-se à mesa de jantar, abriu um atlas. O periquito saltou-lhe da mão, escorregou na fôlha de papel, moveu-se desajeitado, percorreu lento vários países, transpôs rios e mares, deteve-se numa terra de cinco letras.
- Como se chama êste lugar, Maria Júlia?
Maria Júlia veio da cozinha, soletrou e decidiu:
- Minsk.
- Esquisito. Minsk?
- É.
Não confiando na ciência da irmã, Luciana pegou o livro, avizinhou-se de mamãe, apontou o nome que negrejava na carta, junto aos pés do periquito:
- Diga isto aqui, mamãe.
- Minsk.
- Engraçado. Pois fica sendo Minsk, sim senhora. Caminhou muito e parou em Minsk. E' Minsk.
Nomeado o periquito, Luciana dedicou-se inteiramente a êle: mostrou-lhe os quartos, os móveis, as árvores do quintal, apresentou-o ao gato, recomendando-lhes que fôssem amigos. Explicou miüdamente que Minsk não era um rato e, portanto, não devia ser comido. Advertência desnecessária: o bichano, obeso, tinha degenerado, perdido o faro, e queria viver em paz com tôdas as criaturas. Aceitou a nova camaradagem e, dias depois, estirado numa faixa de sol, cerrava os olhos e agüentava paciente bicoradas na cabeça. Essa estranha associação lisonjeou Luciana, que supôs ter vencido o instinto carniceiro da pequena fera e a mimoseou com as sobras da afeição dispensada ao periquito.
O instinto de mamãe é que não se modificava: de quando em quando lá vinham arrelias, censuras, cocorotes e puxões de orelhas, porque Luciana era espevitada, fugia regularmente de casa, desprezava as bonecas da irmã e estimava a companhia de seu Adão carroceiro.
- Luciana!
Luciana estava no mundo da lua, monologando, imaginando casos romanescos, viagens para lá da esquina, com figuras misteriosas que às vezes se uniam, outras vezes se multiplicavam.
A chegada de Minsk alterou os hábitos da garôta, mas isto no comêço passou despercebido e mamãe continou a fiscalizar o ferrôlho da porta, a afastar as cadeiras da janela, excelente para fugas. Pouco a pouco cessaram as precauções - as amigas invisíveis de D. Henriqueta da Boa-Vista deixaram de visitá-la. D. Henriqueta da Boa-Vista era a personalidade que Luciana adoptava quando se erguia nas pontas dos pés, a bôca pintada, as unhas pintadas, bancando moça. Perdeu o costume de andar assim, ganhar cinco centímetros apoiando os calcanhares nos tacões inexistentes de D. Henriqueta da Boa-Vista, esqueceu as escapadas, as aventuras na carroça de seu Adão.
- Luciana!
Agora Luciana se encolhia pelos cantos, vagarosa, Minsk empoleirado no ombro. Sentia-se novamente miúda, quási uma ave, e tagarelava, dizia as complicações que lhe fervilhavam no interior, coisas a que de ordinário ninguém ligava importância, repelidas com aspereza. Mamãe saía dos trilhos sem motivo. A criada negra, rabugenta, estúpida, grunhia: - "Hum! hum!". Maria Júlia era aquela preguiça, aquela carne bamba, dessorada, e comportava-se direito em cima de revistas e bruxas de pano, triste. Papai sumia-se de manhã, voltava à noite, lia o jornal. E tio Severino, idoso, considerado, sentava-se na cadeira de braços e falava difícil. Nenhum desses viventes percebia as conversas de Luciana. Seu Adão carroceiro é que procurava decifrá-las, em vão: arredondava os bugalhos brancos, estirava o beiço grosso, coçava o pixaim, desanimado. Por isso Luciana inventava interlocutores, fazia confidências às árvores do quintal e às paredes. Êsse exercício, agradável durante minutos, acabava sempre fatigando-a. As sombras misturavam-se, esvaíam-se. Afinal desapareceram, substituídas pelo periquito, colorido e ruidoso, de espírio dócil e compreensivo.
- Minsk!
Minsk arregalava o ôlho, engrossaca o pescoço, crescia para receber a carícia:
- Eh!eh!
Antes de amanhecer estalava na casa o grito agudo que aperreava a mamãe. Uma ponta da coberta descia da cama da menina. O periquito se chegava banzeiro, arrastando os pés apalhetados, segurava-se ao pano com as unhas e com o bico, subia. Os braços magros de Luciana curvavam-se sôbre o peito chato, formavam um ninho. E os dois cochilavam um ligeiro sonho doce.
Minsk era também um ser disposto às aventuras e à liberdade. Agitavam-no caprichos, confusas recordações do mato, e batia as asas, alcançava a copa da mangueira, voava daí, passava algumas horas vadiando pela vizinhança. Satisfeitos êsses ímpetos de selvagem, regressava, pulava dos galhos, pisunhava no chão, doméstico e trôpego. Se demorava na pândega, Luciana, inquieta, subia à janela da cozinha, sondava os arredores, bradava com desespêro, até que ouvia duas notas estridentes, localizava o fugitivo, saía de casa como um redemoinho, empurrava as portas, estabanada:
- Quero o meu periquito.
Entrava sem cerimônia, dava buscas, voltava triunfante, com o vagabundo no ombro. Virava o rosto, enviava-lhe beijos. Minsk se equilibrava agarrando-se à alça da camisa dela, metia a cabeça no cabelo revôlto, bicava delicadamente as orelhas e o couro cabeludo.
Ora, Luciana, estouvada, nunca via os lugares onde pisava. Mexia-se aos repelões, deixava em pontas e arestas fragmentos da roupa e da pele. Tinha além disso o mau vêzo de andar com os olhos fechados e de costas. Sabia que essa maneira de locomover-se irritava as pessoas conhecidas, indivíduos ranzinzas, exigentes. Mas a tentação era forte. E se conseguia, de olhos fechados e de costas, atravessar o corredor e a sala de jantar, descer os degraus de cimento, chegar ao banheiro, considerava-se atilada e rejeitava as opiniões comuns. Optimismo curto. Uma pisada em falso, um choque na mesa, um trambolhão, e o orgulho se desmanchava. Um calombo aparecia no quengo, engrossava, justificava as impertinências caseiras. Luciana baixava a crista, humilhada. Necessário recomeçar as experiências até acertar.
Um dia em que marchava assim pisou num objecto mole, ouviu um grito. Levantou o pé, sentindo pouco mais ou menos o que sentira ao ferir-se num caco de vidro. Virou-se, alarmada, sem perceber o que estava acontecendo. Havia uma desgraça, com certeza havia uma desgraça. Ficou um minuto perplexa, e quando a confusão se dissipou, sacudiu a cabeça, não querendo entender.
- Minsk!
A aflição repercutiu na casa, ofendeu os ouvidos de mamãe, de Maria Júlia, da cozinheira, chegou ao quintal e à rua.
- Minsk! gritou mais baixo.
Parecia que era ela que estava ali estendida no tijolo, verde e amarela, tingindo-se de vermelho. Era ela que se tinha pisado e morria, trouxa de penas ensangüentadas. Minsk. Devia ser um sonho ruim, com lobisomens e bichos perversos. Os lobisomens iam surgir. Porque não acordava logo, Deus do céu? Saltar a janela, andar em ruas distantes, entrar na carroça de seu Adão.
- Minsk!
Êle ia exibir-se, fôfo, importante, banzeiro, arrastando os pés, todo trocado: - "Eh! eh!"
- Não morra, Minsk.
Pobrezinho. Como aquilo doía. Um bôlo na garganta, um pêso imenso por dentro, qualquer coisa a rasgar-se, a estalar.
- Minsk!
Êle estava sentindo também aquilo. Horrível semelhante enormidade arrumar-se no coração da gente. Porque não lhe tinham dito que o desastre ia suceder? Não tinham. Ameaças de pancadas, quedas, esfoladuras, coisas simples, sofrimentos ligeiros que logo se sumiam sob tiras de esparadrapo. O que agora havia se diferenciava das outras dores.
Os movimentos de Minsk eram quási imperceptíveis; as penas amarelas, verdes, vermelhas, esmoreciam por detrás de um nevoeiro branco.
- Minsk!
A mancha pequena agitava-se de leve, tentava exprimir-se num beijo:
- Eh! eh!


Texto extraído do livro Histórias incompletas.

7 de setembro de 2011


Ah! A literatura ou me mata ou me dá o que peço dela.

Lima Barreto
 
 
As noites afunilam-se pelas bocas e os homens bebem estrelas. Ficam embriagados de luz e dançam nas ruas, formando nova constelação de pequenos sóis.

Paulo Venturelli

1 de setembro de 2011

A cor branca da amizade - PAULO VENTURELLI

     A tarde estava tão ensolarada que as janelas pareciam levitar, despregando-se das paredes. Padre Moretti, professor de português, leu para nós um poema sobre o edelvais. E nos explicou: é a flor da amizade, só dá em grandes alturas, na beira de abismos de mais de três mil metros. Colhê-la e oferecer a alguém é o maior gesto de apreço que se pode fazer a uma pessoa, pelo esforço da aventura.
     No pátio, eu e Avivan comentamos a respeito do assunto. Ele era o único garoto negro do internato. Eu o adorava por sua agilidade, bom humor e auto-ironia. Apesar de ter um corpo firme, bem desenhado, quando saltava, possuía a leveza de quem se desmancha no ar. Seus olhos estanhados lembravam dois sóis. Havia comentários maldosos sobre nós:
- Tá usando o neguinho como burro de carga, é?
- Vai fazer do nego o teu escravo?
     Naquela noite, furtivo e silencioso no seu jeito, Avivan chegou até minha cama e sussurrou:
- Vou pro mundo. Quero encontrar a flor pra te trazer. Claro que vai demorar, mas não volto sem a branquinha.
     Ele portava a mochila no ombro. Desapareceu na névoa em torno da única luminária acesa pelos lados do portão.
     De manhã, o reitor me chamou. Havia alvoroço por causa do sumiço do “nego”. Interrogaram sobre as razões. Eu disse que não sabia de nada e o caso morreu ali mesmo.
     Meses depois, foi minha vez de abandonar o colégio. Estava cansado daquilo tudo. Usei a via clássica: no gabinete solene, declarei que perdera o interesse pelos estudos. Arrumaram minha papelada, enquanto fiz as malas e mergulhei na liberdade.
     Fui me virando como deu. Até concluir o curso de filosofia e me tornar professor. A vida se tornou agradável. Casei e tive dois filhos que morreram num acidente banal. Andavam de bicicleta lado a lado, resolveram se dar os braços. Talvez quisessem comprovar o quanto gostavam um do outro. As rodas se trançaram e eles caíram. O caminhão que levava flores para uma cerimônia cívica no palácio do governo esmagou os meus garotos. Quando minha mulher soube do ocorrido, não suportou a ausência e se suicidou. Acho que ela jamais soube a extensão, o vetor, a consistência, a incrível durabilidade da falta. E eu acabei por me aposentar.
     Hoje, meu irmão veio falar comigo. Para ele, é um desperdício eu continuar sozinho neste casarão. Garante que pode alugá-lo para uma agência publicitária. Isso daria bom dinheiro para nós. Para nós? Diz que num asilo terei melhor atendimento e convivência para abrandar a solidão. Acho que ele jamais soube a insistência, o ferrão, a profundidade, a devoradora acidez de se estar sozinho.
     Avivan nunca voltou. E o que importa isso ou uma flor? Marcou-me o seu gesto. Por ele valeu a própria vida. Que amigo hoje sai pelo mundo em busca de algo para outro amigo? Que Alpes alguém divisa em frente dos olhos?
     Vou para o asilo. Lá, certamente, há janelas iluminadas e capazes de flutuar na transparência. E eu espero, pois foi esse o modo de conviver comigo mesmo e com a saudade. Não foi muito difícil.
     Acho que o mundo podia ser simples assim.