19 de dezembro de 2011

Show do Chico Buarque - 16/12/2011 no Teatro Guaíra - Curitiba/PR


Com 20 minutos de atraso e uma platéia inquieta, Chico entra. “Velho Francisco” é a primeira canção, “vida veio e me levou”. Um tímido boa noite, quase inaudível, arranca aplausos eufóricos e calorosos do público. E o show segue. O repertório não poderia ser melhor. Os clássicos “Geni e o Zepelim”, “O meu amor”, “Tereza”, “Ana de Amsterdã” foram cantados como hinos pela platéia. A melancólica “Anos dourados” e “Injuriado” foram de encher os lhos de lágrimas. E o que dizer de “Bastidores”? “Cantei, cantei, nem sei como cantava assim”. O novo disco, “Chico”, fez parte do repertório. Todas as mbúsicas foram lindamente cantadas, acompanhadas de algumas vozes da platéia. “Sinhá” foi de matar: o flautista Marcelo e Jorge Helder batucaram, batucaram, batucaram até Chico se ausentar do palco. Dois bis! E, no primeiro, a minha grande e doce surpresa: “Futuros amantes”. Chico despede-se com “Na carreira” e sai, tímido e calado. Lindo, amável, amado e poeta.

13 de dezembro de 2011

O Natal nas palavras de...



Rubem Braga

Natal

É noite de Natal, e estou sozinho na casa de um amigo, que foi para a fazenda. Mais tarde talvez saia. Mas vou me deixando ficar sozinho, numa confortável melancolia, na casa quieta e cômoda. Dou alguns telefonemas, abraço à distância alguns amigos. Essas poucas vozes, de homem e de mulher, que respondem alegremente à minha, são quentes, e me fazem bem, "Feliz Natal, muitas felicidades!"; dizemos essas coisas simples com afetuoso calor; dizemos e creio que sentimos; e como sentimos, merecemos. Feliz Natal!

Desembrulho a garrafa que um amigo teve a lembrança de me mandar ontem; vou lá dentro, abro a geladeira, preparo um uísque, e venho me sentar no jardinzinho, perto das folhagens úmidas. Sinto-me bem, oferecendo-me este copo, na casa silenciosa, nessa noite de rua quieta. Este jardinzinho tem o encanto sábio e agreste da dona da casa que o formou. É um pequeno espaço folhudo e florido de cores, que parece respirar; tem a vida misteriosa das moitas perdidas, um gosto de roça, uma alegria meio caipira de verdes, vermelhos e amarelos.

Penso, sem saudade nem mágoa, no ano que passou. Há nele uma sombra dolorosa; evoco-a neste momento, sozinho, com uma espécie de religiosa emoção. Há também, no fundo da paisagem escura e desarrumada desse ano, uma clara mancha de sol. Bebo silenciosamente a essas imagens da morte e da vida; dentro de mim elas são irmãs. Penso em outras pessoas. Sinto uma grande ternura pelas pessoas; sou um homem sozinho, numa noite quieta, junto de folhagens úmidas, bebendo gravemente em honra de muitas pessoas.

De repente um carro começa a buzinar com força, junto ao meu portão. Talvez seja algum amigo que venha me desejar Feliz Natal ou convidar para ir a algum lugar. Hesito ainda um instante; ninguém pode pensar que eu esteja em casa a esta hora. Mas a buzina é insistente. Levanto-me com certo alvoroço, olho a rua e sorrio: é um caminhão de lixo. Está tão carregado, que nem se pode fechar; tão carregado como se trouxesse todo o lixo do ano que passou, todo o lixo da vida que se vai vivendo. Bonito presente de Natal!
 
O motorista buzina ainda algumas vezes, olhando uma janela do sobrado vizinho. Lembro-me de ter visto naquela janela uma jovem mulata de vermelho, sempre a cantarolar e espiar a rua. É certamente a ela quem procura o motorista retardatário; mas a janela permanece fechada e escura. Ele movimenta com violência seu grande carro negro e sujo; parte com ruído, estremecendo a rua.

Volto à minha paz, e ao meu uísque. Mas a frustração do lixeiro e a minha também quebraram o encanto solitário da noite de Natal. Fecho a casa e saio devagar; vou humildemente filar uma fatia de presunto e de alegria na casa de uma família amiga.

Texto extraído do livro "A Borboleta Amarela", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1963, pág. 124.

9 de dezembro de 2011

Dia da criação - Vinícius de Moraes

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar.
Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.
Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.
Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.
II
Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado.
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado.
Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado.
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado.
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado.
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado.
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado.
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado.
Há um grande espírito de porco
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado.
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado.
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado.
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado.
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado.
Há um tensão inusitada
Porque hoje é sábado.
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado.
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado.
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado.
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado.
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado.
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado.
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado.
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado.
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado.
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado.
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado.
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado.
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado.
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado.
Há a comemoração fantástica
Porque hoje é sábado.
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado.
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado.
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado.
III
Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia,
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.
Lágrima: 1. Saudade na forma líquida; 2. Mistura de água do mar com alma moída 3. Secreção aquosa expelida através dos canais lacrimais quando se espreme o coração; 4. Felicidade que escorre pela face; 5. Estrela cadente que despenca do céu dos olhos de quem ama; 6. Motivo da existência de lenços brancos; 7. Nome comumente dado ao fim de um romance; 8. Momento que antecede o adeus; 9. Pedaço de ontem; 10. Antônimo de desprezo; 11. Grande inspiração dos poetas; 12. Na Europa, folha que cai da árvore quando chega o outono; 13. Na velhice, fome de colo; 14. Névoa úmida que cobre o mundo quando chove dentro da gente. (Ex.: “Não, isso não é lágrima, não. É que a felicidade virou mar dentro de mim e a maré acabou de subir”.) 
A. Gonçalves

Milton Hatoum, o arquiteto das palavras


A literatura é um refúgio. E, muitas vezes, uma válvula de escape para os escritores e leitores. Já sabemos disso. Porém, não é algo assim tão surreal e divino, não. Escrever é, antes de tudo, um trabalho braçal, cansativo e que requer prática e treinamento. Escrever é estar, antes de tudo, preparado para dar vida à novas vidas. O bom escritor não viaja em outros planos astrais, não toma chás de cogumelos para despertar alguma inspiração dentro de si, não é tocado por dedos mortos de falecidos poetas.. o bom escritor conhece a língua e trabalha com ela, é o arquiteto da língua. Constrói estruturas complexas, camada por camada. Escrever é o seu trabalho. Milton Hatoum, em conversa na Biblioteca Pública do Paraná, comprova, para que ninguém tenha dúvidas, porque é considerado um dos maiores escritores contemporâneos: sua obra é, tal qual uma construção, arquitetada sob o olhar atento e crítico de um homem lúcido, inteligente e sensato. Enquanto falava, imaginei como seria a “construção” de um romance.. e me perdi na planta.. Concluo, então, que escrever vai além de escrever. Ler não é ler. Não lemos o que está escrito. Lemos o que está escondido nos buraquinhos dos tijolos.. sabe? Como se a narrativa fosse um prédio sem cor, o qual, a cada leitura, fossêmos acrescentando cores, pintando as janelas, as paredes, o telhado, os rodapés. O escritor é um leitor. O leitor é um escritor. E só na literatura isso é possível.


Mais sobre Milton em: http://www.miltonhatoum.com.br/


4 de dezembro de 2011

Realidade versus idealidade: Uma leitura de "A confissão de Lúcio" de Mário de Sá Carneiro

RESUMO


Considerada a obra prima de Mário de Sá Carneiro, A confissão de Lúcio é uma narrativa envolta em mistério, simbolismos e um sentimento de agonia e sofrimento por parte do narrador/personagem. Utilizando temas recorrentes em suas obras (suicídio, autodesprezo, a influência da arte na vida do artista, a figura do artista que perpassa suas obras para tornar-se a sua maior obra prima, homossexualidade, erotismo, mistério e o belo), Mário de Sá Carneiro apresenta ao leitor uma história onde nada parece ser o que é, primeiramente, porque o narrador não é confiável, e segundo, porque os fatos narrados beiram o fantástico. Este trabalho não objetiva responder os questionamentos que tomam conta do leitor após a leitura de A confissão de Lúcio, mas situar esses questionamentos dentro de teorias que auxiliam no entendimento da narrativa. Analisaremos as influências simbolistas, cubistas e, principalmente, modernistas que permeiam a obra. E, finalmente, partindo da teoria da duplicidade, analisaremos a relação entre o triângulo amoroso formado por Lúcio, Ricardo e Marta.

Palavras-chave: A confissão de Lúcio; Modernismo; duplicidade.

 
vai pela sombra, firme,
o desejo desespero de voltar
antes mesmo de ir-me
antes de cometer o crime,
me transformar em outro
ou em outro transformar-me
quem sabe obra de arte,
talvez, sei lá, falso alarme,
grito caindo no poço,
neste pouco poço nada vejo nem ouço,
mais mais mais
cada vez menos

poder isso, sinto, é tudo que posso,
o tão pouco tudo que podemos

PAULO LEMINSKI, O ex-estranho

 
O MODERNISMO (E OS OUTROS ‘ISMOS’) NA OBRA DE MÁRIO DE SÁ CARNEIRO


A estética da escrita de Mário de Sá Carneiro envolve características de diversos movimentos artísticos da vanguarda portuguesa, o principal deles é o Modernismo. Aberto à inovações, interessou-se pelo cosmopolitismo das vanguardas. Isso despertou no poeta o desejo de ruptura com as literaturas tradicionais e clássicas do passado e um desejo maior de universalizar a literatura contemporânea produzida em Portugal. Assim, Mário de Sá Carneiro buscou a valorização da arte portuguesa, através de um sentimento de nacionalismo voltado ao preceito modernista da importância da estética, não voltada aos clássicos, mas uma nova estética moderna e livre de critérios exteriores. “A Modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável.” (BAUDELAIRE, 1996, p. 22)
Despertar o sentimento de nacionalismo nos portugueses não seria uma tarefa fácil ao poeta, e um dos caminhos encontrados foi a publicação da revista Orpheu, que propôs um novo olhar - sob as lentes modernistas - à arte portuguesa e também uma nova arte, irônica, instável e passível de dúvidas, tendo como base a ideia de uma realidade totalmente ilusória e múltipla, só possível de ser vivida através da arte e da poesia. Mário de Sá Carneiro leva essa (ir)realidade para dentro da obra A confissão de Lúcio.
Em A confissão de Lúcio, o autor incorpora características do Modernismo, Simbolismo, Cubismo, entre outros. Personagens cuja maior obra de arte é seu próprio corpo e sua maneira de viver, simbolizam o ideal de beleza ambicionado por esses artistas e a busca pelo eterno. Ser modernista vai além de romper padrões, é uma maneira de estar e se portar no mundo e diante do mundo: distanciando o artista “superior” das pessoas “normais”. O personagem Gervásio Vila-Nova é um exemplo desse artista:


Entanto, coisa bizarra, no seu corpo havia mistério — corpo de esfinge, talvez, em noites de luar. Aquela criatura não se nos gravava na memória pelos seus traços fisionômicos, mas sim pelo seu estranho perfil. Em todas as multidões ele se destacava, era olhado, comentado — embora, em realidade, a sua silhueta à primeira vista parecesse não se dever salientar notavelmente: pois o fato era negro — apenas de um talhe um pouco exagerado —, os cabelos não escandalosos, ainda que longos; e o chapéu, um bonet de fazenda — esquisito, era certo —, mas que em todo o caso muitos artistas usavam, quase idêntico.
Porém, a verdade é que em redor da sua figura havia uma auréola. Gervásio Vila-Nova era aquele que nós olhamos na rua, dizendo: ali, deve ir alguém. (CARNEIRO, p. 3)


Notam-se características simbolistas e cubistas nas descrições minuciosas do narrador (simbolismo) e nas sensações causadas por manifestações artísticas (cubismo). A personagem denominada “Americana”, ao encontrar-se com Gervásio Vila-Nova e Lúcio em determinado local, diz:
  

Venham cá, digam-me: fremir em espasmos de aurora, em êxtases de chama, ruivos de ânsia — não será um prazer bem mais arrepiado, bem mais intenso do que o vago calafrio de beleza que nos pode proporcionar uma tela genial, um poema de bronze? Sem dúvida, acreditem-me. Entretanto o que é necessário é saber vibrar esses espasmos, saber provocá-los. E eis o que ninguém sabe; eis no que ninguém pensa. Assim, para todos, os prazeres dos sentidos são a luxúria, e se resumem em amplexos brutais, em beijos úmidos, em carícias repugnantes, viscosas. Ah! mas aquele que fosse um grande artista e que, para matéria-prima, tomasse a voluptuosidade, que obras irreais de admiráveis não altearia!… (CARNEIRO, p. 6)


 Essa busca por emoções físicas provocadas pela arte é, enfim, encontrada em festa na casa da Americana, onde a expressividade artística alcança tamanha intensidade, que desestabiliza os limites de imaginação do leitor: “Sim, essa luz mágica ressoava em nós, ampliando-nos os sentidos, alastrando-nos em vibratilidade, dimanando-nos, aturdindo-nos… Debaixo dela, toda a nossa carne era sensível aos espasmos, aos aromas, às melodias!…” (CARNEIRO, p. 11) A obra de arte perfeita se concretiza em seguida, quando nua, a americana dança sob a piscina iluminada e em chamas:

 
E, outra vez desvendada — esbraseada e feroz, saltava agora por entre labaredas, rasgando-as: emaranhando, possuindo, todo o fogo bêbado que a cingia.
Mas finalmente, saciada após estranhas epilepsias, num salto prodigioso,como um meteoro — ruivo meteoro — ela veio tombar no lago que mil lâmpadas ocultas esbatiam de azul cendrado.
Então foi apoteose:
Toda a água azul, ao recebê-la, se volveu vermelha de brasas, encapelada, ardida pela sua carne que o fogo penetrara… E numa ânsia de se extinguir, possessa, a fera nua mergulhou… Mas quanto mais se abismava, mais era lume ao seu redor…
…Até que por fim, num mistério, o fogo se apagou em ouro e, morto, o seu corpo flutuou heráldico sobre as águas douradas — tranqüilas, mortas também. (CARNEIRO, p. 13)


Dentro dos moldes analisados acima, a literatura de Mário de Sá Carneiro, de modo geral, é voltada ao surreal, ao exagero e à intensidade. Em A confissão de Lúcio esses adjetivos tomam força, e o leque de interpretações que a obra nos abre comprova isso.

DUPLICIDADE E IRREALIDADE: UMA CONFISSÃO IMPOSSÍVEL

 
Confissão. A união da realidade interna com a realidade externa de quem confessa. É a tragédia física, moral e psicológica do ser.
Lúcio: um narrador que confessará um crime que não cometeu, mas pelo qual pagou com dez anos de prisão. Não se defendeu, pois era impossível sua defesa. Seu relato soará, no mínimo, perturbador e incoerente ao leitor. É assim que Lúcio Vaz nos introduz na sua narrativa/confissão. Avisa-nos de que tudo que irá relatar é verdadeiro, mesmo parecendo o contrário, ou seja, prepara o leitor para enfrentar a história. A ocultação da verdade e o não esclarecimento dos fatos por parte de Lúcio, além de denotar à história um caráter inverossímil, simbolizam novamente, uma característica do modernismo português: o obscuro e o impacto causados pelo novo.
Após preparar o leitor para a leitura, Lúcio inicia a narrativa relatando sua vida de estudante de Direito em Paris, que, na época, transpirava boêmia, arte e luxo. Conhece Gervásio Vila-Nova, que lhe apresenta e introduz no meio intelectual. Em seguida, é apresentado a Ricardo de Loureiro, grande escritor. A intimidade entre os dois cresce cada vez mais, a ponto de confessarem angústias e anseios um ao outro. Lúcio encontrara alguém que, assim como ele, não se bastava com a realidade, não se sentia pertencente ao mundo real, alguém tal qual ele idealizava ser.


As minhas conversas com Ricardo — pormenor interessante — foram logo, desde o início, bem mais conversas de alma, do que simples conversas de intelectuais.
Pela primeira vez eu encontrara efetivamente alguém que sabia descer um pouco aos recantos ignorados do meu espírito — os mais sensíveis, os mais dolorosos para mim. E com ele o mesmo acontecera — havia de mo contar mais tarde.
Não éramos felizes — oh! não As nossas vidas passavam torturadas de ânsias, e incompreensões, de agonias de sombra… (CARNEIRO, p. 14)


Em uma de suas conversas, Ricardo confessa para Lúcio a agonia causada por sentimentos de amizade que jamais poderiam se concretizar, visto que o poeta sentia essas amizades pela alma, nunca pelo corpo. Nota-se o caráter homossexual de sua confissão, pois ambos, Ricardo e Lúcio, mesmo vivendo numa sociedade parisiense passível de rupturas com o tradicional, não poderiam nutrir um amor pelo mesmo sexo.
Após o surgimento de Ricardo de Loureiro, o amigo Gervásio Vila-Nova não é mais citado na narrativa (somente no final, com a notícia de seu suicídio). Subitamente, Ricardo retorna a Portugual, e, após um ano de distanciamento, manda notícias de seu casamento à Lúcio, que viaja ao encontro do casal. Ao ser apresentado à esposa de Ricardo, Lúcio imediatamente sente-se atraído por sua beleza e perfeição. O discurso de mulher ideal que Ricardo, em dado momento, fizera em confissão à Lúcio, idealizara-se em Marta, com quem Lúcio passa a ter relações. Após diversos encontros, o próprio narrador passa a questionar-se sobre quem é essa mulher que se entrega tão facilmente ao melhor amigo do seu marido, sem preocupar-se em camuflar essa situação quando o triângulo amoroso compartilha de momentos de lazer juntos. Marta, que não parece ter passado, não menciona sobre familiares e nem sequer fala sobre si mesma.


Quem era, mas quem era afinal essa mulher enigmática, essa mulher de sombra? De onde provinha, onde existia?… Falava-lhe há um ano, e era como se nunca lhe houvesse falado… Coisa alguma sabia dela — a ponto que às vezes chegava a duvidar da sua existência. E então, numa ânsia, corria a casa do artista, a vê-la, a certificar-me da sua realidade — a certificar-me de que nem tudo era loucura: pelo menos ela existia. (CARNEIRO, p. 30)


Tais dúvidas enlouquecem Lúcio, que passa a desconfiar de Marta, pois essa demora-se menos em sua companhia. Descobre, então, que Marta traí Ricardo (e ele mesmo) com Sérgio Warginsky. Crente de que Ricardo sabe das traições, Lúcio indigna-se com o amigo, que nada faz a respeito e retorna à Paris.
Isola-se em Paris, e conclui a escrita de uma peça teatral: “A chama”, que seria encenada em Lisboa, não fosse o fato de Lúcio a ter atirado ao fogo, após solicitar que o último ato da peça fosse substituído por outro escrito em momento de forte excitação artística, pedido que lhe foi negado. Passa então, a vagar pelas ruas de Lisboa, e subitamente, encontra-se com Ricardo. Não podendo conter-se, desabafa ao amigo, que lhe propõe uma explicação para o mistério. Retornam à casa de Ricardo, sobem ao quarto de Marta que está em pé, frente a uma janela. Ricardo se apropria de uma arma e atira em Marta, mas o corpo que cai ao chão, sem vida é o de Ricardo, e a arma ainda quente, aparece caída aos pés de Lúcio. Marta desaparece.
 A anormalidade da história nos leva a outro plano, distante do real. Lúcio é um artista incompleto, que não encontra seu lugar na sociedade. A narrativa é escrita em cima de questões de um “eu” que reconstitui sua memória de maneira não linear, o que afirma a obscuridade do íntimo desse narrador e também o caráter inverossímil do que ele narra, já que podem ser memórias danificadas pelo trauma dos acontecimentos e pela doença mental que pode ter se instaurado no narrador/personagem. Confessar o crime é uma maneira de compreender o acontecimento, descobrir-se, repensar-se como protagonista da tragédia e superar entraves e traumas internos.
Quando Ricardo de Loureiro surge na história, percebe-se que toda a narrativa volta-se a ele e sua amizade com Lúcio. Isso acontece porque Ricardo é um desdobramento de Lúcio, uma duplicação, um outro “eu” que se identifica cada vez mais com o “eu” do qual originou-se. Por isso a amizade entre ambos é intensa, visto que Ricardo é a concretização da obra prima idealizada por Lúcio, tornam-se, então, inseparáveis, um depende do outro para sobreviver. Ricardo possui as características que faltam em Lúcio, a lucidez, a mesma insegurança e desolação perante a realidade (mas em Ricardo é confessa) e características físicas (Lúcio não menciona sua fisionomia). Ou seja, Ricardo e Lúcio completam-se.
Marta surge como uma criação de Ricardo para concretizar o desejo carnal que sente por Lúcio e vice-versa. É através dela que os dois amigos se amam. Ao deitar-se com Marta, Ricardo deita-se com Lúcio e os outros amantes da esposa. E Lúcio, ao igualmente deitar-se com ela, possui o corpo de Ricardo. Em determinada cena, Lúcio chega a sentir ânsia, náuseas diante do corpo perfeito de Marta, por se tratar de uma relação heterossexual. Mas, essa heterossexualidade é camuflada, de certa forma, na cena em que Lúcio é beijado por Marta e Ricardo, e o beijo de ambos é igualmente masculinizado.
Todas as ações e descrições de Lúcio têm como força maior o homossexualismo; como exemplos temos as passagens onde descreve homens, sempre com um olhar voltado aos traços femininos que possam existir (e se não houver ele os imagina) nesses homens. Esse olhar homossexual é perceptível, também, ao descrever a relação entre Ricardo e Marta, desprovida de detalhes, carícias e pormenores naturalmente visíveis numa relação conjugal.
Lúcio não demonstra remorso por trair o amigo, pois ter Marta era uma maneira de ter Ricardo, e também por este ser consciente da traição; foi Ricardo quem “empurrou” Lúcio para o triângulo amoroso: “Se lhe mentia — estimava-o, entretanto, com o mesmo afeto. Mentir não é menos querer.” (CARNEIRO, p. 35). O amor homossexual de ambos se concretiza através de um adultério heterossexual. Neste sentido, Lúcio, Ricardo e Marta só existem quando interligados, formando um triângulo amoroso. Marta surge para afirmar a questão do duplo.
Dois personagens secundários na trama são de extrema importância para a questão da duplicidade: Gervásio Vila-Nova e Sérgio Warginsky.
Gervásio Vila-Nova, além de introduzir Lúcio no meio intelectual parisiense, desperta em Lúcio profunda admiração, podendo ser interpretado como ponto de partida para Lúcio almejar um “outro”, uma duplicação aperfeiçoada de sua alma. Na mesma linha de raciocínio, podemos pensar na personagem Americana, que também despertou em Lúcio, através do espetáculo de sensações, a sexualidade voltada ao “outro”. E Sérgio Warginsky, por despertar em Ricardo ternuras excessivas, o que o torna segundo amante de Marta, despertando ciúmes em Lúcio. Nota-se assim, que qualquer personagem da obra é uma continuação do drama da duplicidade vivido por Lúcio.
O desdobrar da história se dá quando Ricardo esclarece o mistério a Lúcio:


Ai, como eu sofri… como eu sofri!… Dedicavas-me um grande afeto; eu queria vibrar esse teu afeto - isto é: retribuir-to; e era-me impossível!… Só se te beijasse, se te enlaçasse, se te possuísse… Ah! mas como possuir uma criatura do nosso sexo?…(...) Uma noite, porém, finalmente, uma noite fantástica de branca, triunfei! Acheia… sim, criei-a!… criei-a…
Ah! e desde essa noite eu soube, em glória soube, vibrar dentro de mim o teu afeto - retribuir-to: mandei-a ser tua! Mas, estreitando-te ela, era eu próprio quem te estreitava…Satisfiz a minha ternura: Venci! E ao possui-la, eu sentia, tinha nela, a amizade que te devera dedicar - como os outros sentem na alma as suas afeições. (...)Tu não eras o meu único amigo - eras o primeiro, o maior — mas também por um outro eu oscilava ternuras… Assim a mandei beijar esse outro… Warginsky, tens razão, Warginsky… (CARNEIRO, p. 54)


Em seguida, a tragédia:


Ricardo puxou de um revólver que trazia escondido no bolso do casaco e, antes que eu pudesse esboçar um gesto, fazer um movimento, desfechou-lho à queima-roupa…
Marta tombou inanimada no solo… Eu não arredara pé do limiar…
E então foi o mistério… o fantástico mistério da minha vida…
Ó assombro! ó quebranto! Quem jazia estiraçado junto da janela, não era Marta — não! —, era o meu amigo, era Ricardo… E aos meus pés - sim, aos meus pés! — caíra o seu revólver ainda fumegante!…
Marta, essa desaparecera, evolara-se em silêncio, como se extingue uma chama… (CARNEIRO, p. 55)


A morte, já vislumbrada no primeiro capítulo: “morto para a vida e para os sonhos… nada podendo já esperar e coisa alguma desejando” (CARNEIRO, p. 2), cai sobre os três personagens.
A existência de Lúcio, desde o início da confissão, parece dar-se apenas dentro do triângulo amoroso. Não se pode atribuir uma ordem para as mortes, mas, visto que Marta não existia senão como fruto de Ricardo, este teria cometido suicídio. E seu suicídio simboliza a morte de Lúcio.
A narrativa segue com um breve relato de Lúcio da vida como prisioneiro. Nesse relato, menciona a semelhança entre o juiz que o interrogara e um médico que, oito anos atrás, havia lhe tratado de uma “febre cerebral” (CARNEIRO, p. 56). Esse médico seria um psiquiatra, e a cadeia, na verdade, um manicômio. Confirmando essa teoria, Lúcio relata os gritos de natureza estranha que, eventualmente, ouvia. Dentro desse local, conhece um “rapaz louro, muito distinto, alto e elançado.” (CARNEIRO, p. 57), cujo motivo da prisão fora o assassinato de sua amante. Esse jovem, assim como Ricardo, confessa angústias e preocupações a Lúcio, afirmando que, a maior preocupação de sua vida fora a arte dessa vida. Esse jovem é outro desdobramento de Lúcio.
Livre da prisão e passados dez anos do ocorrido, nada mais parece importar a Lúcio. A confissão é também seu bilhete suicida, já que, sem o “outro” e a criação do “outro” que os mantinha ligados, a vida perde o sentido, pois precisa aprender a viver na vida “real”.


Acho-me tranqüilo — sem desejos, sem esperanças. Não me preocupa o futuro. O meu passado, ao revê-lo, surge-me como o passado de um outro. Permaneci, mas já não me sou. E até à morte real, só me resta contemplar as horas a esgueirar-se em minha face… A morte real - apenas um sono mais denso…
Antes, não quis porém deixar de escrever sinceramente, com a maior simplicidade, a minha estranha aventura. (CARNEIRO, p. 57)


A morte de Lúcio se dá de maneira metafórica e subjetiva. Mas, o artista que buscara incessante pela criação da sua obra prima alcançara esse objetivo e desfrutara desse momento (efêmero) de felicidade, que o trouxe consequências devastadoras (eterno). No início da confissão, Lúcio afirma que, alcançando o sofrimento máximo, nada mais poderia lhe fazer sofrer. E que, vivido um momento de máxima felicidade, nada mais poderia lhe fazer feliz. Por isso considera-se um morto-vivo, alguém cujas sensações e vibrações tão incansavelmente buscadas em vida, não podem mais ser sentidas e alcançadas. A capacidade de se manter e atravessar a realidade dissiparam-se em Lúcio, após a morte de um outro Lúcio que ele nunca conseguiu ser.
Do amor irrealizável à morte, Lúcio percorreu um caminho tortuoso de auto-conhecimento. O protagonista sabe que matou sua criação, ao não compreendê-la na sua ânsia de possuir o criador. E vive só, impotente. Vítima de uma realidade insuportável, não é capaz de sentir e aceitar sua própria existência.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BAUDELAIRE, C. Sobre a Modernidade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1996.

BERARDINELLI, C. Mário de Sá-Carneiro. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

CARNEIRO, M.S. A confissão de Lúcio. Livro digital. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=16999. Acesso em: Set. 2011.

JÚNIOR, J.L.F.S. Para uma leitura de Mário de Sá Carneiro. Disponível em: http://www.kplus.com.br/materia.asp?co=310&rv=Literatura Acesso em: 27 Set. 2011.

LEMINSKI, P. O ex-estranho. São Paulo: Iluminuras, 2009.