7 de junho de 2011

(Viajando...) MEMORIALISMO FICCIONAL: Reconstruindo Paulo Honório e Bentinho através de suas memórias




um flash back
um flash back dentro de um flash back
                                                                       um flash back dentro de um flash back de
                                                                       um flash back
um flash back dentro do terceiro flash back
                                                                       a memória cai dentro da memória
pedraflor na água lisa
                                                                       tudo cansa (flash back)
menos a lembrança da lembrança da lembrança
                                                                       da lembrança
                                                           PAULO LEMINSKI, Vezes Versus Reveses.


MEMORIALISMO FICCIONAL: RECONSTRUINDO PAULO HONÓRIO E BENTINHO ATRAVÉS DE SUAS MEMÓRIAS

Ana Paula Miola

Para que serve a literatura? Para registro, dirão alguns. Para nada, dirão outros. Mas nós dizemos: a literatura serve para lembrar. Para não deixar cair no esquecimento a história, a geografia, os costumes, as fotografias, as sensações. A literatura é a consolidação da memória. É a maneira mais segura de registrar e guardar fatos que devem ser lembrados e relembrados.
É partindo deste pensamento que analisaremos uma das obras mais importantes da literatura brasileira, escrita por Graciliano Ramos: São Bernardo. Tendo-a como base, analisaremos as semelhanças da obra com Dom Casmurro de Machado de Assis. Para essa análise, vamos utilizar os conceitos da literatura memorialista ou memorialismo ficcional.
A literatura memorialista é constituída de biografias, autobiografias, correspondências, literatura de viagens e diários. São obras confessionais, subjetivas, onde o autor revela segredos, narra sua trajetória de vida ou a do personagem em questão e relata experiências vividas. Pode ser real ou ficcional. O memorialismo brasileiro tem seu auge na poesia e na prosa romântica.
Graciliano Ramos e Machado de Assis, autores das obras utilizadas neste artigo, dispensam apresentações. Verdadeiros mestres da literatura brasileira. Produziram algumas das mais importantes obras da nossa literatura: de Graciliano Ramos temos São Bernardo, Caetés e Vidas Secas; de Machado de Assis temos Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba.
Graciliano Ramos, natural de Quebrangulo, Alagoas, foi cronista, romancista, jornalista e político. Morou em várias localidades e contribui com sonetos, contos e crônicas a muitos jornais. Em 1936, é acusado de conspirar no levante comunista de 1935, e é exilado no Rio de Janeiro. Nesse período, escreve um de seus mais belos livros: Angústia, que lhe rendeu o Prêmio Lima Barreto. Sua obra é escrita em linguagem concisa, seca, “enxuta”. Tendo como cenário o Nordeste brasileiro, Graciliano trabalha com a subjetividade de seus personagens e a condição política em que se encontram. Descreve as paisagens nordestinas, focando nos problemas sociais, econômicos e políticos, remetendo duras críticas ao governo.
Machado de Assis, natural do Rio de Janeiro, foi, entre outras coisas, romancista, cronista, dramaturgo e poeta. Sua saúde frágil, a epilepsia e a gagueira, não o impediram de trabalhar em jornais e publicar obras românticas e poemas. Escreveu obras que marcaram o início de escolas literárias, como, por exemplo, Memórias póstumas de Brás Cubas, considerado o marco do realismo brasileiro. Fundou a Academia Brasileira de Letras. Sua obra, de forte cunho social, tem como características o pessimismo, a denúncia das imoralidades humanas, o humor, a ironia e a frequente intervenção do narrador. Machado escrevia a verdade sobre o ser humano.
Nas obras em questão, São Bernardo e Dom Casmurro, o memorialismo se apresenta de maneira ficcional, já que não se trata de uma biografia verídica.
São Bernardo é escrito com dois tipos de memórias: as memórias de Dom Casmurro e as memórias do próprio narrador, Paulo Honório. Já no início do romance Paulo Honório, como Bentinho, sente a necessidade de explicar o porquê do livro. Ao contrário de Bentinho, que vive na capital, em meio a pompas, teatros e mulheres, e encontrou tempo suficiente para pensar na escrita de suas memórias, Paulo Honório, homem trabalhador, capitalista empreendedor, que só almeja o sucesso de sua propriedade, “encomendaria” a escrita das suas. Seu livro seria escrito pela “divisão do trabalho”, e já nesse momento percebemos sua veia capitalista. Ao constatar que os designados ao trabalho não escreviam conforme mandava, dispensa todos e resolve ele mesmo escrever.
 
“Tenciono contar a minha história. Difícil. Talvez deixe de mencionar particularidades úteis, que me pareçam acessórias e dispensáveis. Também pode ser que, habituado a tratar com matutos, não confie suficientemente na compreensão dos leitores e repita passagens insignificantes. De resto isto vai arranjado sem nenhuma ordem, como se vê. Não importa. Na opinião dos caboclos que me servem, todo o caminho dá na venda.” (RAMOS. 2010. P. 7)

 Paulo Honório continua, afirmando que seu grau de instrução é pouco e precário para a escrita literária, já que seus estudos nunca foram além de livros de zootecnia e agropecuária. E a lembrança de Madalena o faz pensar que “se possuísse metade da instrução” dela “encoivarava isto brincando” (RAMOS. 2010. P 8). Importante lembrarmos que Paulo Honório aprendeu a ler e escrever na cadeia, com Joaquim sapateiro. Mas, ao longo da sua narrativa, o leitor percebe que Paulo Honório é um homem instruído e sua escrita é lírica, poética, dotada de muita beleza.
Em Dom Casmurro, Bentinho também explica a escrita de suas memórias:

“Quis variar, e lembrou-me escrever um livro.(...) Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras?... (...)Deste modo, viverei o que vivi (...)” (ASSIS. E-book. P. 2)
  
Ao contrário de Bentinho, que utiliza o apelido que um poeta lhe designa para nomear seu livro, Paulo Honório dá ao seu livro de memórias o nome de sua propriedade: São Bernardo. São Bernardo foi para Paulo Honório o que de mais importante ele possuía. “O meu fito na vida foi apossar-me das terras de S. Bernardo.” (RAMOS. 2010. P. 8). Cada um à sua maneira, dedicou o título do livro àquilo que julgava importante.
Mais um traço de Dom Casmurro em S. Bernardo é notável quando, qualquer ação realizada por Paulo Honório se dá após o pio da coruja. Por exemplo, ao dispensar os amigos que o ajudariam na escrita do livro, Paulo Honório desiste de escrever, mas, um dia qualquer, ouve o pio da coruja e inicia a escrita das memórias. É também o pio da coruja que desperta no fazendeiro as lembranças de Madalena. No caso de Bentinho, que tenciona escrever um livro, mas não o faz de imediato, isso só acontece quando os bustos na parede de sua casa lhe “falam” que o faça.
A personagem feminina é outro fator importante (talvez o mais importante) nos dois romances. Em Dom Casmurro Bentinho e Capitu se amam desde a juventude.
   
“(...) Também adverti que era fenômeno recente acordar com o pensamento em Capitu, e escutá-la de memória, e estremecer quando lhe ouvia os passos. Se se falava nela, em minha casa, prestava mais atenção que dantes, e, segundo era louvor ou crítica, assim me trazia gosto ou desgosto mais intensos que outrora, quando éramos somente companheiros de travessuras. Cheguei a pensar nela durante as missas daquele mês, com intervalos, é verdade, mas com exclusivismo também.”’ (ASSIS. E-book. P. 11)
                                                                                                            
Bentinho está fadado ao seminário, devido a uma promessa feita pela mãe. E o amor entre ele e Capitu fica ameaçado.
Em S. Bernardo, após se apossar das terras que tanto almejava, Paulo Honório acorda uma manhã pensando em casamento. “Amanheci um dia pensando em casar. Foi uma ideia que me veio sem que nenhum rabo de saia a provocasse. Não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é bicho esquisito, difícil de governar.” (RAMOS. 2010. P. 43). E então, Paulo Honório cogita algumas possibilidades de moças para realizar o casamento. “Não me sentia, pois, inclinado para nenhuma: o que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de S. Bernardo.” (RAMOS. 2010. P. 43). Após algumas tentativas frustradas de criar em sua mente o ideal de mulher, opta por D. Marcela, filha do juiz. Vai então, a casa do juiz para analisar melhor o empreendimento que estava prestes a fazer. Chegando lá, se depara com D. Marcela, uma senhora magra e uma loirinha, Madalena. “Comparei as duas, e a importância da minha visita teve uma redução de cinquenta por cento.” (RAMOS. 2010. P. 48).
O casamento entre Madalena e Paulo Honório acontece. A diferença entre Bentinho e Capitu, está justamente na falta de amor que uniu Paulo Honório e Madalena, cujo casamento era um negócio. Mas, Paulo Honório foi se afeiçoando a esposa. “Comecei a fazer nela algumas descobertas que me surpreenderam.” “Imaginei-a uma boneca de escola normal. Engano.” (RAMOS. 2010. P. 72).
Voltemos a Dom Casmurro. Ainda no seminário, Bentinho conhece aquele que seria seu melhor amigo: Escobar. Em visitas à família, Bentinho apresenta Escobar à Capitu, que fica desgostosa do amigo. Estando no seminário, vez ou outra Bentinho recebia notícias de Capitu. Algumas não o agradavam, mas a moça sempre explicava-se de maneira coerente, minimizando qualquer desconfiança. Após formar-se, Bentinho regressa e casa-se com Capitu.

“Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor pegue em si, morto de esperar, e vá espairecer a outra parte; casemo-nos. Foi em 1865, uma tarde de março, por sinal que chovia. Quando chegamos ao alto da Tijuca, onde era o nosso ninho de noivos, o céu recolheu a chuva e acendeu as estrelas, não só as já conhecidas, mas ainda as que só serão descobertas daqui a muitos séculos.” (ASSIS. E-book. P. 93)
 
 Os dois narradores, Paulo Honório e Bentinho, casam-se. Mas, ambos descobrem em suas amadas personalidades, ações e pensamentos desconhecidos até então.
Paulo Honório casa-se com uma professora, instruída e de boa educação. Sendo ele um bruto, homem capitalista cujo grande objetivo de vida sempre foi possuir bens e fazer dinheiro, entra em muitos conflitos com os trabalhadores da fazenda, agride-os verbalmente e fisicamente, não tolera desobediência. Para possuir as terras de S. Bernardo, Paulo Honório utilizou-se de métodos nem sempre corretos. E assim seguiu sua vida. Madalena, ao se deparar com um homem capitalista, bruto e violento, entra em conflito com Paulo Honório. Ao contrário dele, Madalena era uma humanista, que se preocupava com o ser humano, com os trabalhadores. Paulo Honório preocupava-se com o “ter” e Madalena com o “ser”.
Essas diferenças geraram muitos conflitos entre o casal. Mesmo grávida, Paulo Honório não poupava a esposa de brigas e conflitos diários. Esses conflitos se agravam quando Paulo Honório passa a sentir um ciúme doentio da esposa. Ao vê-la conversando com os empregados, acreditava que ela realmente o traísse.

“Mais tarde, no escritório, uma ideia indeterminada saltou-me na cabeça, esteve por lá um instante quebrando louça e deu o fora. (...) Interrompi a leitura da carta que tinha diante de mim e, sem saber por quê, olhei Madalena desconfiado. (...) Estremeci, e pareceu-me que a cara de Madalena estava mudada.” (RAMOS. 2010. P. 96)

  As brigas entre o casal continuaram, até mesmo após o nascimento do filho. Para Paulo Honório, Madalena era sabida demais, inteligente em demasia, e isso o deixava intrigado. Olhava para a esposa e a via promiscuamente, se oferecendo aos trabalhadores da fazenda, sorrindo para o Nogueira, conversando em alto tom com Padilha. Imaginava que os homens esculhambassem sua imagem, sabendo de Madalena muito mais do que ele sabia.
Sobre o filho, poucas são as informações fornecidas por Paulo Honório:

“Afastava-me lento, ia ver o pequeno, que engatinhava pelos quartos, às quedas, abandonado. Acocorava-me e examinava-o. Era magro. Tinha os cabelos louros, como os da mãe. Olhos agateados. Os meus são escuros. Nariz chato. De ordinário as crianças têm o nariz chato. Interrompia o exame, indeciso: não havia sinais meus; também não havia os de ouro homem.” (RAMOS, G. 2010. P. 105)
  
Em Dom Casmurro, após dois anos de casado, Bentinho declara que tudo ia bem, exceto o fato de ainda não terem um filho. A amizade entre ele e Escobar havia se fortalecido, assim como a amizade entre a esposa de Escobar e Capitu. Até que, finalmente, vem ao mundo o tão desejado filho de Bentinho e Capitu: Ezequiel.
Ezequiel cresce muito agitado, brincalhão. E uma brincadeira em especial começa a tirar o sono de Bentinho: Ezequiel imita com frequência os modos de Escobar. Assim, o ciúme de Bentinho torna-se doentio também.

“(...) sendo antes tão cioso dela, não continuei a sê-lo apesar do filho e dos anos. Sim senhor, continuei. Continuei, a tal ponto que o menor gesto me afligia, a mais ínfima palavra, uma insistência qualquer; muita vez só a indiferença bastava. Cheguei a ter ciúmes de tudo e de todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou desconfiança.” (ASSIS. E-book. P. 103)
 
Em visita à casa de Escobar e Sancha, sua esposa, Bentinho sente-se atraído pela mulher do amigo, quando percebe que ela também está seduzida por ele. No dia seguinte, o desejo não mais existia.  É quando acontece a tragédia: Escobar morre afogado. No enterro, Capitu consola Sancha, mas Bentinho parecia notar algo mais:

“Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas... As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã.” (ASSIS. E-book. P. 111)
  
Capitu e Bentinho estavam em paz novamente, mas Ezequiel crescia, e conforme crescia, aumentavam nele as semelhanças com o defunto Escobar. Os olhos, as feições, o corpo. O relacionamento do casal já não é mais o mesmo, e Ezequiel estando perto, os dois afastam-se. Colocaram-no, então, em um colégio.
Tanto em São Bernardo quanto em Dom Casmurro, os maridos pensam que as esposas deveriam morrer. Bentinho, comparando seu drama com o de Otelo, personagem de Shakespeare, chega a dizer quem Capitu deveria morrer em seu lugar. Paulo Honório escreve: “E se eu soubesse que ela me traía? Ah! Se eu soubesse que ela me traía, matava-a, abria-lhe a veia do pescoço, devagar, para o sangue correr um dia inteiro.” (RAMOS. 2010. P. 114) Em outra passagem: “Afirmei a mim mesmo que matá-la era ação justa. Para que deixar viva mulher tão cheia de culpa? Quando ela morresse, eu lhe perdoaria os defeitos.” (RAMOS. 2010. P. 124). Bentinho resolve se matar, mas não consegue. Paulo Honório, por sua vez, percebe que a mulher está cada dia mais magra e pálida.
Paulo Honório continua agredindo verbalmente Madalena. A última briga se dá por conta de uma carta que a esposa escrevia. Mal sabia Paulo Honório que seria a última briga.
Bentinho resolve separar-se da esposa. Antes disso, porém, precisa tirar a dúvida da traição de sua cabeça:
 
“Capitu recompôs-se; disse ao filho que se fosse embora, e pediu-me que lhe explicasse...
  — Não há que explicar, disse eu. 
  — Há tudo; não entendo as tuas lágrimas nem as de Ezequiel. Que houve entre vocês?
(...)
— Que não é meu filho.
Grande foi a estupefação de Capitu, e não menor a indignação que lhe sucedeu, tão naturais ambas que fariam duvidar as primeiras testemunhas de vista do nosso foro.
— A separação é coisa decidida, redargüi, pegando-lhe na proposta. Era melhor que a fizéssemos por meias palavras ou em silêncio; cada um iria com a sua ferida. Uma vez, porém, que a senhora insiste, aqui vai o que lhe posso dizer, e é tudo.
Não disse tudo; mas pude aludir aos amores de Escobar sem proferir-lhe o nome. Capitu não pôde deixar de rir, de um riso que eu sinto não poder transcrever aqui; depois, em um tom juntamente irônico e melancólico: 
— Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!
Concertou a capinha e ergueu-se. Suspirou, creio que suspirou, enquanto eu, que não pedia outra coisa mais que a plena justificação dela, disse-lhe não sei que palavras adequadas a este fim. Capitu olhou para mim com desdém, e murmurou:
— Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se? É natural; apesar do seminário, não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisto; não nos fica bem dizer mais nada.” (ASSIS. E-book. P. 121)
  
Capitu, Bentinho e Ezequiel viajam para a Europa. Capitu se instala na Suíça com o filho e Bentinho retornar ao Brasil. Correspondem-se por cartas. Anos mais tarde, Bentinho recebe a visita do filho já crescido e deveras parecido com Escobar:
 
“Conhece-me pelos retratos e correu para mim. Não me mexi; era nem mais nem menos o meu antigo e jovem companheiro do seminário de São José, um pouco mais baixo, menos cheio de corpo e, salvo as cores, que eram vivas, o mesmo rosto do meu amigo. (...) Era o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar. Era o meu comborço; era o filho de seu pai.” (ASSIS. E-book. P. 125)

 Capitu morrera. Ezequiel conta que falava muito de Bentinho. Morrera bonita.
O filho viaja para cursar a universidade, e tempo depois Bentinho recebe a notícia de sua morte.
O desenrolar da história de Paulo Honório e Madalena se dá também de maneira trágica. A carta que gerara briga entre o casal, era, na verdade, uma carta de despedida. A mesma carta que a incriminou, inocenta-a de qualquer suspeita, e Madalena suicida-se.

 “Entrei apressado, atravessei o corredor do lado direito e no meu quarto dei com algumas pessoas soltando exclamações. Arredei-as e estaquei: Madalena estava estirada na cama, branca, de olhos vidrados, espuma nos cantos da boca. Aproximei-me, tomei-lhe as mãos, duras e frias, toquei-lhe o coração, parado. Parado.” (RAMOS. 2010. P. 128)

 Paulo Honório e Bentinho acabam sozinhos. Ao final da leitura dos romances, outra semelhança entre as obras é perceptível: os narradores escrevem para entender o que deu errado em suas vidas.
Bentinho termina sua narrativa com a certeza de que jamais encontraria amor semelhante ao de Capitu, jamais amaria alguém como a ela. Mas, a dúvida da traição está presente até mesmo no último parágrafo do romance:
 
“E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve!” (ASSIS. E-book. P. 128)
 
Em São Bernardo, Paulo Honório termina sua narrativa pensando em Madalena, no que viveram, nas brigas que tiveram e no seu espírito humanista, tão contraditório ao dele. Paulo Honório refaz sua trajetória ao lado de Madalena para compreender suas ações, o suicídio da esposa e a condição em que se encontra agora. A memória lhe trazia Madalena: “E os meus passos me levavam para os quartos, como se procurassem alguém.” (RAMOS. 2010. P. 139)
A decadência de Paulo Honório se dá em todos os sentidos: a propriedade, que era seu maior orgulho e fonte de renda, está abandonada, decadente; sua mediocridade como ser humano e como capitalista, levou ao suicídio daquela que escolheu para esposa; o herdeiro de suas terras, seu filho, não lhe desperta amor e, finalmente, o homem poderoso que foi, termina sozinho, escrevendo suas memórias para compreender a ele mesmo.

 “Cinqüenta anos perdidos, cinqüenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada. Cinqüenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê!” (RAMOS. 2010. P. 140)

Escrever, para Paulo Honório, não é apenas retornar ao passado, como era para Bentinho, mas encontrar-se nesse passado como um ser humano. Ou seja, o papel da memória neste contexto vai muito além de simplesmente reviver essas memórias, torna-se uma necessidade do inconsciente do narrador de exprimir-se, de fazer-se valer novamente.
Paulo Honório torna-se consciente de si mesmo, de sua condição: “Hoje não canto nem rio. Se me vejo ao espelho, a dureza da boca e a dureza dos olhos me descontentam.” (RAMOS. 2010. P.142). Reforça a imagem do monstro que se transformou, transfigurado pelo ciúme e pelas mudanças sociais que ocorrem, paralelamente, no romance. “Não consigo modificar-me, é o que me aflige.” (RAMOS. 2010. P.143) Madalena se faz presente em toda a sua narrativa final, como que delimitando seus pensamentos, colocando nele a consciência de seus atos e personalidade:
 
“Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.
Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins.
E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte!
A desconfiança é também consequência da profissão.
Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.” (RAMOS. 2010. P.144)
 
Paulo Honório escreve seu romance solitário, e finaliza-o de tal forma: “E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.” (RAMOS. 2010. P.145)
A semelhança principal entre as duas obras analisadas, é a memória dos seus narradores. Ambos terminam suas histórias com a dúvida da traição. Em São Bernardo essa dúvida não é tão explícita quanto em Dom Casmurro, cujo tema principal é a dúvida. Escrever suas memórias, é uma maneira de salvação para os narradores. Bentinho toma consciência de sua solidão, enquanto Paulo Honório toma consciência do amor que sentiu por Madalena, e desperdiçou.
São Bernardo retrata a política da época, os costumes, a evolução tecnológica e as classes sociais existentes no Brasil. Seu cunho social é fortíssimo. Na relação entre Paulo Honório e Madalena, que representam dois ideais diferentes, o capitalista e a humanista, a questão política se evidencia. Paulo Honório, o capitalista que perde todo seu poder, que presencia a queda de sua propriedade, perde também ele próprio o seu valor. A política o corrompeu, fez com que se tornasse um homem desumano, que busca na literatura uma fuga.
O processo da escrita, muitas vezes comentado pelos narradores, confirma a importância que a literatura teve nas suas vidas. Isso não fica claro para os narradores, é algo inconsciente. Mesmo para Paulo Honório, pouco instruído nesse sentido, a literatura torna-se fundamental, de maneira inconsciente. Não fosse o poder da escrita, as memórias e lembranças dos narradores teriam se perdido com o tempo. A Paulo Honório e Bentinho nada mais resta, somente a escrita, talvez ela os devolva a paz que não encontraram na vida real e aquiete seus corações.
Como escreveu, certa vez, o grande poeta chileno Pablo Neruda, em seu livro de memórias (que ironia) intitulado Confesso que vivi - Memórias: “Levaram o ouro e nos deixaram o ouro... Levaram tudo e nos deixaram tudo... Deixaram-nos a palavra.”
Graciliano Ramos e Machado de Assis, ou Paulo Honório e Bentinho, como queiram, deixaram-nos sim, tudo. Palavras, memórias e a certeza de que, na literatura, toda história tem seu valor.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, M. Dom Casmurro. Livro Digital. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv00180a.pdf> Acesso em: 10 MAIO 2011.
BRAGA, E.M.R. O papel da linguagem na análise dos pontos de vistas das personagens Paulo Honório e Madalena no romance São Bernardo. Disponível em: <http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=4392&cat=Ensaios&vinda=S> Acesso em: 20 MAIO 2011.
Disponível em: <http://www.infopedia.pt/$memorialismo> Acesso em: 17 MAIO 2011.
LOBO, A. As raízes de Paulo Honório: uma leitura de São Bernardo a partir de Raízes do Brasil. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/view/5991/4532> Acesso em: 15 MAIO 2011.
MELLO, M.S. Graciliano Ramos: modernista engajado. Disponível em:
NERUDA, P. Confesso que vivi – Memórias. Rio de Janeiro: Difusão Editorial, 1978.
RAMOS, G. São Bernardo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.
SOARES, E.G. Vozes sociais e cronotopo: uma análise discursiva do romance São Bernardo. Disponível em:<http://www.facef.br/novo/gedi/gedi_2008/GEDI_2008_vozes_sociais.pdf> Acesso em: 20 MAIO 2011.

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