4 de dezembro de 2010

Análise do conto "A última noite de Natal" de Graciliano Ramos


Os grandes olhos claros e aguados boiavam na sombra nevoenta, cheios de espanto. Esfregou-os, arrastou-se pesado e estanguido, mal seguro à bengala, sentou-se num banco do jardim, fatigado, suspirando, examinou a custo os arredores. Gastou uns minutos passeando as mãos desajeitadas na gola do casaco. O exercício penoso enfureceu-o. Resmungou palavras enérgicas e incompreensíveis, esforçou-se por dominar a tremura. Com certeza era por causa do frio que os dedos caprichosos divagavam no pano esgarçado e os queixos banguelos se moviam continuamente. Era por causa do frio, sem dúvida. Se conseguisse abotoar o casaco e levantar a gola, os movimentos incômodos cessariam.

Em que estava pensando ao chegar ali? Ia jurar que pensava em coisas agradáveis. Ou seriam desagradáveis? Pedaços de recordações incoerentes dançavam-lhe no espírito, acendiam-se, apagavam-se, como vaga-lumes, confundiam-se com os letreiros verdes, vermelhos, que se acendiam e apagavam também quase invisíveis na poeira nebulosa. Tentou reunir as letras, fixar a atenção nas mais próximas, brilhantes, enormes.

No primeiro parágrafo, já se pode perceber que se trata de um senhor de idade, um velhinho, com dificuldade de locomoção, pois "sentou-se num banco do jardim, fatigado, suspirando", e também pela tremura das mãos e a dificuldade de fechar o casaco. No segundo parágrafo, o problema de visão aparece, com a dificuldade de distinguir letras. Já nesses primeiros parágrafos, nota-se a presença de um narrador onisciente, que conhece os pensamentos do personagem, que sabe o que passa em sua mente, como se sente, como gostaria de se sentir, como vê as coisas. Por exemplo, na primeira frase, onde os olhos "claros e agudos boiavam na sombra nevoenta, cheios de espanto." Somente um narrador que sabe o que se passa na mente do personagem saberia que os olhos estavam cheios de espanto. Outro exemplo, é a ironia imposta quando se discute a razão da tremura das mãos, onde, na cabeça do velhinho "era por causa do frio, sem dúvida.", deixando a entender que sua idade não era a real causadora desse mal. No segundo parágrafo o narrador onisciente fica ainda mais visível, pois fala das recordações que lhe vieram à mente, e logo se apagaram. O nebuloso, a escuridão e a angústia se mostram desde o começo, e se estendem durante o conto todo.

A igreja toda aberta resplandecia. O incenso formava uma neblina perturbadora. E, através dela, os altares refugiam como sóis, a luz das velas numerosas chispava nas auréolas dos santos.

Que doidice ! Não é que estava imaginando ver ali, nas transitórias claridades, a igreja vista sessenta anos antes? Tresvariava. Sacudiu a cabeça, afastou a lembrança importuna. De que servia desenterrar casos antigos, alegrias e sofrimentos incompletos?

Aonde está esse personagem? Está sentado num banco, mas em que lugar? Essa questão aparece no terceiro parágrafo, onde as imagens se confundem tanto para ele quanto para o leitor, devido à neblina formada pelo incenso. A pergunta é respondida no quarto parágrafo, ele estava em frente a uma igreja. Uma igreja que lhe trouxe mais e mais lembranças, algumas importunas. Sua vida sempre fora fragmentada, pedaços, cortes, recortes, peças, "casos antigos", "alegrias", "sofrimentos incompletos". O que mais estaria incompleto?

O que devia fazer... Pôs-se a mexer os beiços, procurando nas trevas úmidas e leitosas que o envolviam o resto da frase. O que devia fazer... Repetiu isto muitas vezes, numa cantilena, distraiu-se olhando a chuva amarela, verde, vermelha, dos repuxos. Impossível distinguir as cores. Ultimamente a cidade ia escurecendo. As pessoas que transitavam junto aos canteiros sem flores eram vultos indecisos; os prédios se diluíam nas ramagens das árvores, manchas negras; os letreiros vacilantes não tinham sentido.

O que devia fazer... De repente a idéia rebelde surgiu. Bem. Devia meter os botões nas casas e agasalhar o pescoço. Depois cruzaria os braços, aqueceria as mãos debaixo dos sovacos, ficaria imóvel e tranqüilo. Mas os dedos finos e engelhados avançavam, recuavam, não havia meio de governá-los. Se pudesse riscar um fósforo, chegá-lo a um cigarro, esqueceria os inconvenientes que o aperreavam: o frio, a dureza das juntas, o tremor, a zoeira constante, sussurro de marimbondos assanhados. Dores errantes andavam-lhe no corpo, entravam nos ossos e vinham à pele, arrepiavam os cabelos, fixavam-se nas pernas, esmoreciam.
 
"Impossível distinguir as cores." "Ultimamente a cidade ia escurecendo." Aqui, novamente, temos o problema de visão, transformando as pessoas em vultos, diminuindo a claridade da cidade. Mas a cidade não escurecia apenas porque o personagem já não via bem, escurecia porque dentro dele algo estava morrendo, porque dentro dele algo estava se apagando. A cidade, as pessoas, a vida, estavam escurecendo, estavam perdendo o sentido e o significado para ele. As dores errantes das quais fala o narrador, não são apenas dores físicas, não invadiram apenas os ossos e pele, invadiram seu coração.
 
Agora não estava no banco do jardim, perto das estátuas, das árvores, do coreto, dos esguichos coloridos. Estava longe, a sessenta anos de distância, ajoelhado na grama, diante da igreja da vila. Os rostos embotados, que se dissociavam, juntaram-se no largo onde um padre velho dizia a missa da meia-noite. Fervilhavam matutos em redor das barracas, num barulho de feira, e uma sineta badalava impondo em vão respeito e silêncio. Os cavalinhos rodavam. Esgueiravam-se casais pelos cantos. O padre velho dirigia olhares fulminantes àquela cambada de hereges. Uma figura pequenina cantava os hinos ingênuos, de versos curtos, fáceis. Tudo parecera de chofre muito sério, eterno. Os hinos capengas elevavam-se, estiravam-se. A mulher tinha um rosto de santa e exigia adoração. Sessenta anos. As fachadas enfeitavam-se com lanternas de papel, janelas escancaradas exibiam presépios, listas de foguetes cortavam o céu negro. A sineta badalava, zangada. E o burburinho da multidão não diminuía.

Sessenta anos. Da cinza que ocultava os olhos frios saltou uma faísca; os alfinetes pregados na carne trêmula embotaram-se; o espinhaço curvo endireitou-se; um débil sorriso franziu os beiços murchos; os braços ergueram-se lentos, buscando a imagem de sonho.


Neste parágrafo, o personagem volta ao passado, há sessenta anos atrás. Volta à igreja, naquela missa da meia noite, onde conheceu alguém que "exigia adoração". Relembra os detalhes, os casais nos cantos, o sino, o padre. Lá, ajoelhado, naquela missa de Natal, vislumbrando e adorando aquela santa, algo mudou dentro dele. E, hoje, ao lembrar desse momento, seus olhos se iluminam, seu coração de enche de luz novamente, "o espinhaço curvo endireitou-se", ou seja, todo o peso da vida lhe saí de cima das costas, e até um sorriso é capaz de esboçar. Tudo por aquela imagem apenas de sonho.

Imagem de sonho, que doidice! Era apenas uma bonita criatura de bom coração. Ligara-se a ela. E dezenas de vezes tinham-se os dois ajoelhado ali na grama, olhando as lanternas, os presépios, os foguetes, o padre que dizia a missa da meia-noite. Algumas esperanças, muitos desgostos. Os meninos cresciam, engordavam. E no jardim da casa miúda um jasmineiro recendia.

E daquele primeiro encontro na missa de Natal, nasceu um amor. Um amor tão forte que o autor afirma "ligara-se a ela", como se um vínculo emocional e espiritual tivesse se formado entre os dois, como se essa ligação fosse indestrutível, muito mais do que somente casamento, algo atemporal. Casam-se. Unem-se. E a vida de casal é apresentada com quatro palavras: "algumas esperanças, muitos desgostos". Filhos, uma casa aconchegante, com um jardim, uma vida feliz.

Depois tudo fora decaindo, minguando, morrendo. Achara-se novamente só. Os filhos e os netos se haviam espalhado pelo mundo. Agora... que extensa caminhada, que enormes ladeiras, pai do céu! Já nem se lembrava dos lugares percorridos.

Conseguiu abotoar o casaco e levantar a gola.

Andar tanto e afinal chegar ali, arriar num banco, não perceber as letras que se acendiam  e apagavam.


E tudo fora morrendo, ficou só, sua companheira partira antes dele, a mulher com quem havia se ligado quebrara esse laço, e levara consigo sua alegria e vontade de viver. Essa vida que lhe restara, essa extensa caminhada, fora marcada por sofrimentos e dificuldades, "enormes ladeiras". E a última frase diz tudo, "andar tanto e afinal chegar ali...", chegar ali, naquele banco de praça, apenas com suas lembranças, suas doces lembranças, mais uma noite de Natal só, mais uma noite só. Doente, velho, cansado. Sozinho.

Certamente àquela hora, diante duma igreja aberta, outro homem novo admirava outra pessoinha ajoelhada, sentia desejos imensos, formava planos absurdos. Os desejos e os planos iam desfazer-se como a fumaça luminosa dos repuxos.

O ciclo da vida. O seu ciclo estava se fechando, e o de outra pessoa estava apenas começando. Alguém que viveria as mesmas coisas que ele viveu, que sofreria tanto quanto ele, que choraria lágrimas tão amargas quanto as suas, que sentiria uma saudade dolorida como aquela que sentira. Mas que amaria também como ele amou, se uniria à alguém como ele se uniu. Sua última noite de Natal finalmente chegara. Estaria novamente ao lado de sua amada, o peso da vida ficaria naquele banco, sua extensa caminhada terminava ali. E tudo que ele viveu, alguém estaria começando a viver naquela noite, mas o nebuloso e a escuridão finalizam o texto, como se fosse um aviso do velho para o próximo que vivesse sua história: a felicidade é tão efêmera e passageira, quanto "a fumaça luminosa dos repuxos".

Um comentário:

  1. Olá Ana Paula, poxa valeu você realizar a analise deste texto, pois foi muito importante encontrar essas informações!!!!

    ResponderExcluir