1 de dezembro de 2010

A ponte - Dalton Trevisan


Há alguns dias atrás, adquiri o livro "Duzentos ladrões" do Dalton. Um pocket ilustrado, cheio de minicontos fantásticos, naquele estilo Dalton de escrever: na veia, sem rodeios, sem dó. Ao chegar na página 71, me deparo com o texto "A ponte", e qual não foi minha surpresa ao terminar de lê-lo na página 72, ao constatar que se tratava de um texto... mais suave, mais doce (?). Sinceramente, não encontrei palavras ainda para descrever como esse belo texto é, aonde ele melhor se encaixa. A única coisa que posso dizer, é que me tocou profundamente, como nenhum outro texto do Dalton tinha antes feito. Lendo-o, vi outra face do enigmático Vampiro de Curitiba... quem dera eu pudesse entender e conhecer todas elas... Mas entendê-lo, seria decifrá-lo, e isso não quero. Prefiro que ele continue sendo sempre esse mistério, que a cada linha, me surpreende e me leva ao próximo texto. Salve, Dalton Trevisan!



A ponte

Depois que a filha de dezoito anos morreu num acidente, a pobre senhora nunca mais foi a mesma. Se Deus, que era o seu Deus de fervorosas preces diárias, matava a filha no lugar e na vez da mãe, tudo carecia de sentido.
Deprimida, sem ânimo, ela não fazia nada. Não conversava, não cozinhava, não bordava, não lia. Não nada.
E nunca, nunca mais rezou.
Ali diante dos outros, porém ausente. Cabisbaixa, gesto manso, alheia ao mundo em redor. Se alguém lhe falava, única resposta era um olhar triste - mas tão triste que antes não olhasse.
Anos se passaram. Ela achou que era tempo de se reunir à filha perdida. Acabar com essa angústia sem fim. Sacudiu a apatia, invocou toda a coragem. E decidiu, sim, atirar-se da ponte da cidade.
Acorda bem cedo, veste o melhor vestido. E - faz frio - um casaco marrom de lã. Rabisca bilhete em despedida: não mais que sete linhas (com duas palavras riscadas, quais serão?). Uma vida inteira, já pensou, no simples adeus de sete linhas? Antes que a família se levante deixa na mesa da cozinha a folha de caderno, sem dobrar.
Vai até a porta, reluta um pouco e volta. Do dedo anular com esforço repuxa a aliança. Um e outro toque fácil, se livra da dentadura. E, sobre o bilhete, deposita as duas prendas.
Chegando ao meio da ponte demora-se algum tempo a olhar - choveu à noite - as águas revoltas do rio. Perdeu a coragem ou está em dúvida?
Seja porque é muito alta, cruza toda a ponte, começa a descer pela encosta. A grama úmida, daí escorrega. Desliza pela ribanceira, bate a cabeça numa pedra e tomba suavemente na água.
É domingo, Dia das Mães. A família acorda mais tarde. Assim que acham o bilhete, em desespero, correm de lá para cá. Alguém se lembra da ponte preferida pelos suicidas da cidade.
De longe vêem um bando de crianças que brincam à beira do rio. O corpo está preso numa forquilha, de borco, meio afundado na água escura.
E, como elas não sabem o que é, atiram pedras apostando quem acerta mais vezes.
No velório, apesar de ferida, a pobre mãe mostra o tempo todo a suave expressão de paz encontrada. E uma sombra de sorriso triste.
Mas tão triste que antes não sorrise.

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