4 de maio de 2011

Antiode (Contra a poesia dita profunda) - João Cabral de Melo Neto

A

Poesia te escrevia:
flor! conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer.


gerando cogumelos
(raros, fragéis, cogu-
melos) no úmido
calor de nossa boca.


Delicado, escrevia:
flor! (Cogumelos
serão flor? Espécie
estranha, espécie


extinta de flor, flor
não de todo flor,
mas flor, bolha
aberta no maduro)


Delicado, evitava
o estrume do poema,
seu caule, seu ovário,
suas intestinações.


Esperava as puras,
transparentes florações,
nascidas do ar, no ar,
como as brisas.

B


Depois, eu descobriria
que era lícito
te chamar: flor!
(Pelas vossas iguais


circunstâncias? Vossas
gentis substâncias? Vossas
doces carnações? Pelos
virtuosos vergéis

de vossas evocações?
Pelo pudor do verso
 
- pudor de flor -
por seu tão delicado

pudor de flor,
que só se abre
quando a esquece o
sono do jardineiro?)


Depois eu descobriria
que era lícito
te chamar: flor!
(flor, imagem de


duas pontas, como
uma corda). Depois
eu descobriria
as duas pontas da flor:


as duas
bocas da imagem
da flor: a boca
que come o defunto


e a boca que orna
o defunto com outro
defunto, com flores,
- cristais de vômito.


C


Como não invocar o
vício da poesia: o
corpo que entorpece
ao ar de versos?


(Ao ar de águas
mortas, injetando
na carne do dia
a infecção da noite).


Fome de vida? Fome
de morte, frequentação
da morte, como de
algum cinema.


O dia? Árido.
Venha, então, a noite,
o sono. Venha,
por isso, a flor.


Venha, mais fácil e
portátil na memória,
o poema, flor no
colête da lembrança.


Como não invocar,
sobretudo, o exercício
do poema, sua prática,
sua lânguida horti-cultura?


Pois estações
há, do poema, como
da flor, ou como
no amor dos cães;


e mil mornos
enxertos, mil maneiras
de excitar negros
êxtases, e a morna


espera de que se
apodreça em poema,
prévia exalação
de alma defunta.


D


Poesia, não será esse
o sentido em que
ainda te escrevo:
flor! (Te escrevo:


flor! Não uma
flor, nem aquela
flor-virtude - em
disfarçados urinóis).


Flor é a palavra
flor, verso inscrito
no verso, como as
manhãs no tempo.


Flor é o salto
da ave para o vôo;
o salto fora do sono
quando seu tecido


se rompe; é uma explosão
posta a funcionar,
como uma máquina,
uma jarra de flores.


E


Poesia, te escrevo
agora: fezes, as
fezes vivas que és.
Sei que outras


palavras és, palavras
impossíveis de poema.
Te escrevo, por isso,
fezes, palavra leve,


contando com sua
breve. Te escrevo
cuspe, cuspe, não
mais; tão cuspe


como a terceira
(como usá-la num
poema?) a terceira
das virtudes teologais.

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